quarta-feira, 7 de março de 2012

A velha casa da floresta


   A casa era velha. Muito velha! Não era uma casa grande e, olhando bem, nem tão pequena assim que se desse motivo à discussão. As poucas telhas intactas formavam um arremedo de telhado desconjuntado, pífio, que a desonrava. As janelas há muito que não ostentavam os vidros reluzentes, quebrados as pedradas pelos vândalos. As paredes de madeira, pretas, carcomidas pelos cupins, mostravam a sua idade, o seu abandono e, o que impressionava mais as raras pessoas que deitavam-lhe os olhos: a solidão! De fato, fora construída no meio do nada! O quintal e o jardim, tomados pelo capim alto, por pouco não se confundiam com a própria mata fechada que a circundava. A estradinha de chão batido que dava acesso à antiga construção perdera-se no tempo.

     Dizia-se, os que costumavam circular por aquelas bandas à procura de caça ou os rumores cultivados pelo pequeno povoado próximo da floresta, que a vivenda encarquilhada era mal assombrada: a alma de uma mulher encontrava-se presa à velha casa numa relação de simbiose indissolúvel! Não raras foram as ocasiões em que os relatos apaixonados dos forasteiros desavisados ou moradores incrédulos da vila davam conta de que “a morta” ficava na janela a seduzi-los com canções e oferecimentos sexuais dos mais variados. Folclore ou não, o fato era que ninguém, principalmente os habitantes das circunvizinhanças, se animavam de coragem para entrar à noite na floresta da casa mal assombrada!

     Alice, de súbito, abriu os olhos assustada, atenta, mas enxergou pouca coisa. A visão turva era-lhe de pouca serventia. Instintivamente levou a mão à testa onde considerou como certa a origem da dor de cabeça que lhe atingiu forte. Sentiu entre os dedos um líquido viscoso e, sem atinar ainda muito bem o que havia acontecido, soube na mesma hora que se tratava de sangue! A mão na testa desceu para as pálpebras. Esfregou-as devagar. A visão voltou-lhe plena. Correu os olhos para todos os lados querendo saber onde estava e descobriu, apesar do ambiente envolto na mais completa escuridão, que estava dentro do jipe, o carro de seu namorado!

     Então... ela lembrou!

     — Aquele maldito tronco de árvore no meio da estrada! – Resmungou entre dentes.

     O jipe, conduzido pelo namorado, desgovernou-se da estradinha de chão batido e acabou descendo um declive acentuado, curto, que logo se transformou numa ribanceira que os freios em vão tentaram vencer sem sucesso. Os gritos de desespero dela e de Eliseu, chacoalhados violentamente pelos solavancos da descida forçada, foi a última cena que conseguiu lembrar-se antes de mergulhar no escuro inescapável do inconsciente.
   
     Alice esforçou o braço até o painel acionando o interruptor da luz interna do carro. Antes de fazer qualquer movimento para experimentar a própria condição física, sem estalar algum osso ou músculo do corpo, ela destravou o cinto de segurança. Ignorou momentaneamente a escuridão opressora que cercava o jipe e dedicou sua atenção ao companheiro. Eliseu estava desacordado! O coração de Alice pareceu se comprimir de súbito em considerar a hipótese de seu amado estar morto! Havia um forte hematoma no olho esquerdo, leves escoriações nos braços, pequenos cortes e arranhões na face direita, provocados pelos minúsculos vidros estilhaçados do pára-brisa.

     — Oh, meu Deus! Por favor... não! – Lamentou numa voz contida impregnada de pura preocupação enquanto, esquecida das dores do corpo, inclinou-se de lado levando a mão ao pescoço dele para sentir-lhe a carótida.

     Ficou em dúvida!
     Encostou o ouvido no lado esquerdo do tórax. Sorriu satisfeita.
     Ele estava vivo!

     Alice não precisou de muito tempo para concluir que Eliseu necessitava de cuidados médicos urgentes. Tratou de sair à cata do telefone celular dele ou dela naquela confusão de objetos espalhados aleatoriamente durante a descida acidentada, o que não eram poucos: comida enlatada, cobertores, travesseiros, materiais de pesca e outras coisas de uso necessário no “camping” para onde estavam indo não muito longe dalí. “Cadê o maldito celular?” Não achou o seu e muito menos achou o do namorado.

     — E agora? – Reclamou para si mesmo recostando-se no assento do carro com raiva. Sem mais o que pensar ficou olhando para frente sem perspectiva.

     Daí... Alice viu a casa! Viu assim, meio que escondida, meio que distante, entre as árvores! Comprimiu os olhos, como se isso ajudasse a focar melhor o objeto de seu interesse na escuridão da noite. Apesar das janelas escancaradas ao mundo, sem vidros, Alice percebeu uma luz fraca, bruxuleante, provavelmente oriunda de velas ou algum tipo de lamparina a óleo. Havia alguém na velha morada! Nem tudo estava perdido, afinal de contas!

     — Ah... eu preciso ir lá... – disse firme enquanto olhava o namorado desacordado. Pegou uma lanterna de sua mochila. Inclinou-se novamente sobre Eliseu dando-lhe um sonoro beijo no rosto. – Fique com Deus! Já volto com ajuda, meu amor!

      Abriu a portinhola do jipe saindo para enfrentar a floresta, decidida, não sem antes estar de posse de um facão escondido embaixo do banco do motorista: ferramenta apropriada para abrir caminho em mata fechada.

     E lá se foi ela, em noite avançada, à procura de ajuda!

     À medida que ganhava terreno, cortando capim, galhos e outros impedimentos naturais a golpe de facão, Alice ao mesmo tempo não tirava da mira a velha morada que ia se revelando aos poucos. A luminosidade da lua por aqueles lados fluía sem obstáculos. O facho de luz da potente lanterna movimentava-se o tempo todo na busca de detalhes. Quanto mais a depauperada residência crescia aos seus sentidos tanto mais a mesma parecia ganhar contornos suspeitos e ameaçadores, como se a parte frontal da casa fosse um rosto deformado, carrancudo, onde um olho, a janela escura, parecia vazado e o outro, a janela do quarto iluminado, tencionava sondar-lhe o corpo devassando à sua intimidade: investigáva-lhe a alma!

     Parou horrorizada! As pernas recusaram-se a lhe obedecer!

     Decidiu retornar para o Jipe de imediato! Deu meia volta e quando ia iniciar a caminhada de retorno ela ouviu uma voz:

     — Moça, espere um pouco!

     Alice gritou assustada apontando o facho de luz para o lugar de onde vinha a voz. Armou o facão decidida a decepar a cabeça de alguém que se atrevesse a encostar-lhe os dedos. Preparou-se para enfrentar um maníaco sexual ou um “serial killer”, no entanto viu-se de frente com um velhinho, de compleição frágil, de mãos levantadas para se proteger do golpe mortal.

     — Calma, moça! Não tenha medo. Não pretendo lhe fazer mal algum!

     Alice olhou aquele senhor de cabelos brancos, magro, de pequena estatura que piscava o tempo todo para se desviar da luz inquisidora da lanterna. Antes de lhe questionar qualquer coisa, ela voltou-se desconfiada para a casa que, de repente, perdera os contornos malévolos que a assustara segundos antes.

     — Quem é o senhor? – Ela perguntou baixando as armas.

     — Meu nome é Otávio, moça. Estou de passagem para avaliar em que condições se encontra a velha casa de campo de meus pais! – Ele disse em voz mansa, calma e segura. – O que uma moça bonita como você está fazendo aqui, vagueando sem rumo no meio da mata, à noite, hein?

     Alice não perdeu tempo em apresentações: contou, sem preâmbulos, a situação do acidente com o namorado que estava desacordado no veiculo acidentado. O velho, à medida que ia recebendo as informações, fazia caras e bocas de preocupação.

     — Minha jovem, faça o seguinte: Vá até à casa e peça o telefone celular para Eleonora, minha esposa. Eu vou dar uma olhada no rapaz. Sou médico já aposentado, mas ainda não perdi o jeito, não.

     — Mas...

     — Vá! Vá, não discuta, moça. O seu namorado precisa de cuidados médicos. Use o celular de Eleonora. Convença os bombeiros de enviar uma ambulância o mais rápido possível.

     — É que... – Alice tentou argumentar sobre a má impressão que tivera da casa, mas Otávio não lhe deu tempo passando por ela e indo em direção do lugar onde estava o jipe. Que velhinho esquisito!  
    
     Alice acompanhou com o olhar o homenzinho simpático infiltrando-se no meio da noite em direção ao local do acidente. Sorriu para si mesmo porque ele lhe fez lembrar o velhinho atrapalhado de um filme antigo que assistira quando criança: “A dança dos vampiros”. Poucos minutos depois, a jovem desvencilhou-se da floresta fechada chegando nos limites da enorme clareira de capim alto que, iluminada pela lua cheia, cercava a residência maltratada pelo tempo. Antes de investir toda a atenção à casa, Alice percebeu uma senhora já de idade avançada, andando de um lado para outro perto de um “Ford” novo estacionado a cinco metros do alpendre. Devia ser a esposa do senhor Otávio.

     — Dona Eleonora? – chamou em tom de voz alto enquanto levantava a mão para atrair à atenção dela . A velha senhora parou no mesmo instante, sem assustar-se, segura de si e olhou na direção de onde vinha o chamado.

     Enquanto caminhava para encontrar-se com Dona Eleonora, a jovem permaneceu desconfiada, atenta à casa, esperando que a qualquer instante a mesma se revelasse.

     Então, naquele exato momento, inesperadamente ocorreu o primeiro dos muitos fenômenos sinistros que tornariam aquela noite como a pior de todas as noites na vida de Alice. Ela viu, ou julgou ter visto, por um lapso de tempo curtíssimo, não mais do que cinco segundos, uma mulher vestida de branco gesticulando excessivamente no parapeito da janela. A cena lhe pareceu irreal porque a desconhecida desferias golpes violentos de mãos fechadas contra o vazio da janela, como se ela tivesse a intenção de quebrar o vidro da mesma que há muito fora depredado!  Aparentava ser uma mulher bonita, de longos cabelos pretos cacheados, rosto fino, delicado, aristocrático! A beleza daquele rosto só não se apresentou em toda a sua plenitude porque a fisionomia hirta expressava revolta e desespero. A boca se abriu exageradamente como se gritasse sem que som houvesse. Os olhos arregalados manifestaram horror, revelaram medo! Talvez até estivesse vendo “coisas”, no entanto Alice considerou que todos aqueles gestos espalhafatosos eram direcionados a ela com o claro propósito de adverti-la: “vá embora enquanto é tempo”!

      E achou por bem acatar o “aviso”.

     Ela já ia tomar o rumo de volta à mata fechada quando o vulto de Dona Eleonora apresentou-se-lhe firme, solícita e preocupada.
— Moça, o que foi? O que está acontecendo? Você está tão pálida!

     — Humm... não sei bem o que dizer, senhora. Parece que eu vi... sei lá... uma mulher pedindo ajuda dentro da casa, sabe?

     — Impossível, moça! Não há ninguém lá. Tenho certeza! Eu e meu marido estávamos fazendo um levantamento dos objetos e não vimos ninguém! – disse a mulher idosa intrigada com a estranha que havia lhe chamado pelo nome.

     Alice bem que tentou, mas não conseguiu afastar os olhos da janela como se esperasse que a mulher misteriosa fosse aparecer novamente. Estava chocada com o que vira. A cena realmente impressionou-lhe muito a tal ponto de ignorar a presença de Dona Eleonora que gentilmente, diante das circunstâncias, ofereceu-lhe o braço em apoio.

     — Vamos, querida, não tenha medo! Você deve estar impressionada com as histórias que as pessoas contam sobre a mulher fantasma que vive nesta casa, mas tudo não passa de folclore, sabe?

     — Que história? – Alice perguntou deixando-se levar relutantemente, ainda sem retirar os olhos da janela.

     — Bem... hum... dizem que antes de meu sogro comprar esta casa, ela pertenceu a Elias Mendonça, fazendeiro muito poderoso desta região. Foi ele que a construiu, afastada da vila com a intenção de desfrutar discretamente um romance fora do casamento. Ele vinha ver a amante quase todos os dias. Estava apaixonado, mas não poderia abandonar a esposa pelas convenções sociais rígidas da época. Um dia a tal amante adoeceu e os médicos a desenganaram. Dizem que Elias Mendonça a amava tanto que resolveu fazer um pacto com o diabo preservando-a de algum modo. A alma foi extraída do corpo que a doença deteriorava e presa dentro das paredes da casa para que o coronel pudesse conversar com ela todas as noites! Como vê... é apenas folclore!

     — Nossa senhora! Que coisa mais mórbida! – Alice disse enquanto a proximidade da casa ia-lhe minando o vigor das passadas até que parou, vinte ou trinta metros distante da velha morada, decidida a não seguir em frente.

     — Qual é o seu nome, querida? E como sabe o meu? – perguntou Eleonora postando-se diante da jovem assustada.

     — Oh, me desculpe à falta de educação! Esta noite não está sendo muito fácil pra mim,sabe! Meu nome é Alice.

     — O que você está fazendo por aqui a esta hora da noite, querida? Você está machucada! Olhe só a sua testa!

     Alice ainda encontrava-se hipnotizada pela aparição misteriosa da janela. Não respondeu à velha senhora de imediato. A casa, tinha de admitir, exercia um fascínio impressionante sobre ela. Quando finalmente teve certeza que a mulher de cabelos cacheados não iria mais aparecer, ela procurou dar atenção à esposa de Otavio. No entanto os acontecimentos daquela noite entrelaçavam-se de modo bastante suspeito. De começo, o rosto da velha lhe intrigou um pouco, porém, mesmo considerando a parca iluminação natural da lua, a sensação de conhecê-la de algum lugar começou a tomar forma em sua mente. De repente, de estalo, ela tomou outro susto:

     Dona Eleonora era incrivelmente parecida com a mulher da janela!

     Poder-se-ia afirmar que se tratava da mãe dela tal eram as semelhanças físicas entre as duas, mas não! Alice, naquele momento, mesmo não sabendo como explicar a si própria, intuição talvez, teve a absoluta certeza de que aquela senhora à sua frente e a suposta alma da mulher confinada à casa eram a mesma pessoa!

      Ela estava diante de uma mulher morta!  




         

     Alice ficou lívida. Começou a balançar a cabeça negando o que seus olhos registravam enquanto dava passadas para trás. Levantou o facão na altura do peito apontando-o para a outra.

      — Afaste-se de mim!

      Ela caminhou resoluta, de costas, buscando distanciar-se de Eleonora com o facão em riste.

      — Oh, querida, por favor. O que está fazendo? Você está muito abalada! – tentou contemporizar Eleonora juntando as mãos e levando-as ao rosto contrito por não saber o que fazer para ajudar a jovem confusa!

      Alice não se deixou comover pela fisionomia condoída daquela mulher estranha, suspeita e dissimulada! Sim, a moça não tinha como ajuizar o torvelinho de emoções contraditórias que lhe embaralhava os sentidos, porém de alguma forma sabia que Eleonora não era o que aparentava ser. Aquela pose submissa de querer ajudar encontrava-se apenas na superfície de uma criatura sórdida, maléfica, mesquinha! Bem diferente da expressão genuinamente desesperada da figura de cabelos cacheados que tentou adverti-la para que fosse embora. Mas como esta contradição era possível se as duas eram a mesma pessoa?

      Então, subitamente, Alice sentiu-se agarrada por trás. Os braços fortes de alguém imobilizaram os seus com decisão impedindo-a de usar o facão para defender-se. O coração dela quase saiu pela boca quando viu a máscara de bondade de Eleonora esfacelar-se de uma só vez, dando lugar a um rosto de pedra onde dois pontos negros, implacáveis, gélidos, vasculharam-lhe à alma. O sorriso maléfico da velha  foi o que de pior aguçou os maus pressentimentos de Alice: o perigo ia muito além do simplesmente temer por sua vida! Ela encontrava-se a mercê de uma devoradora de almas!

      — Otávio, depressa, seu incompetente! – sibilou a megera raivosamente olhando na direção de algum ponto atrás de Alice.

      O homenzinho engraçado, simpático, que lhe causara até nostalgia, agora de fisionomia tão circunspecta quanto a da cúmplice, se aproximou de lado rapidamente com uma seringa nas mãos!

      — Oh não, não...ai Meus Deus... não, por favor!

      Ela sentiu a picada dolorosa nos músculos do braço que retesado pelo medo não impediu que a agulha penetrasse com eficiência.

      — Solte-a! – disse a velha cadela à pessoa que a segurava com força.

      Alice sentiu-se livre por um breve momento. Notou que a bruxa vinha-lhe de encontro, por isso apertou o cabo do facão firme entre as mãos, mas este parecia pesar uma tonelada. Não chegou a sequer levantá-lo quando sentiu o tapa que lhe estourou na cara violentamente. O golpe fez-lhe retroceder três ou quatros passos, as pernas afrouxavam a cada segundo, a visão começou  a se tornar confusa e caiu sentada!  Tentou levantar-se sem sucesso. O corpo não queria lhe responder. O sono forçado sobreveio-lhe inapelavelmente. A pobre coitada viu a lua apagar-se aos poucos. Percebeu que a maldita bruxa se dirigia a terceira figura que lhe agarrara por trás. Antes que a escuridão tomásse-lhe os sentidos uma vez mais naquela noite, ela, entorpecida pela droga que lhe corrompia a vontade, ainda pôde ouvir:

      — Quanta idiotice, hein? Que papelão! Com milhares de garotas pra  conquistar, Eliseu, meu filho, você tinha que se envolver logo como uma “sensitiva” insuportável!

                                    
 



      Quando o cheiro forte de álcool lhe trouxe, de repente, à consciência, Alice levou alguns segundos para recompor as idéias do que tinha acontecido. As lembranças se atropelaram deixando-lhe a par da dura realidade dos fatos: fora seqüestrada, vítima de uma conspiração engendrada por um casal de psicopatas disfarçados de velhinhos simpáticos e, o que a deixou completamente arrasada, sem esperanças de sair incólume daquele pesadelo: a participação de Eliseu, o homem por quem se apaixonara.

      Ela estava deitada, de costas, amarrada no piso de tábuas velhas e mofadas de um dos quartos da temível casa. Por isso, o seu campo de visão, de início, restringiu-se às telhas e caibros enegrecidos. O ambiente parecia estar muito bem iluminado. Instintivamente queria absorver mais informações de sua situação ao mesmo tempo em que temia saber a verdade da mesma. Ergueu a cabeça com dificuldade explorando rapidamente o campo reduzido das laterais do lugar e não gostou nada do que viu: achou-se posicionada de braços e pernas abertas, completamente nua, ornamentado uma estrela de cinco pontas desenhada no chão em meio a círculos colororidos; uma quantidade espalhafatosa de pequenas velas perfaziam-se, também em círculo, em torno dela! O estômago de Alice sentiu o primeiro choque: quase vomitou sobre si mesma! Já ouvira falar ou assistira um documentário  a respeito da tal estrela de cinco pontas: era o pentagrama de Baphomet! O coração dela já acelerado ritmou mais forte. Quisera ela, naquele instante, que estivesse enganada mas aquilo só podia significar que estava fazendo parte de um ritual de magia negra! Seus lábios começaram a tremer. Quis gritar, mas estava amordaçada por um lenço! Não podia pedir ajuda!

      Alice esforçou o pescoço um pouco mais buscando enquadrar o foco de visão à sua frente e, horrorizada, confirmou os seus temores: a partir dos seus pés constatou outro maldito círculo, desta vez, desenhado com riscos grossos, acompanhados de quatro enormes velas. Do outro lado da ameaçadora circunferência, viu uma espécie de altar, forrado de cetim branco, com mais velas de variados tamanhos que ladeavam as laterais. Em cima da mesa encontrava-se deitada a velha Eleonora, vestida de túnica branca com desenhos e símbolos diversos. Em pé, ela registrou Otávio  paramentado com roupas longas e pretas. O rosto dele estava transfigurado, com os olhos revirados para cima só se podendo ver o branco dos mesmos em transe! Ele emitia, em voz baixa e rouca, uma série de ladainhas em língua estranha. A jovem teve então certeza que se encontrava em meio a um processo pavoroso de ritual satânico. Engoliu a saliva e começou a chorar! As lágrimas lhe escorriam abundantes; ouvira falar que em alguns rituais daquele tipo não era raro a consumação de sacrifícios de animais ou até mesmo de pessoas! Temeu seriamente pela sua vida!

      Mas... diante de todo aquele cenário horroroso e hostil, das emoções que lhe invadiam em ondas crescentes, nada ali dentro daquele quarto fétido de bolor e umidade surpreendeu tanto Alice quanto no exato momento em que ela percebeu a presença do espírito da “mulher da janela” em desespero. A aflição extremada da outra, por incrível que pudesse parecer, era maior que a sua, o que levantou um questionamento não menos preocupante: o que poderia atemorizar alguém que já não se encontrava mais no plano terreno ou, simplificando melhor as palavras, o que poderia ser pior do que a morte?

      No lado esquerdo, Alice descobriu a desconhecida da janela, vestida de túnica branca tentado sair do lugar sem conseguir. O corpo dela emitia um tênue brilho e, vez ou outra, transparecia e materializava-se de modo intermitente! Algum fenômeno, que não era visível a percepção humana, lhe prendia à parede! Os cabelos cacheados, revoltos pelo manear violento da cabeça em atitude de revolta, caiam-lhe até a cintura. Ela se sacudia para frente e para trás, para os lados, tentava pular, tateava o ar desesperadamente como se quisesse abrir um buraco numa prisão de vidro! A mulher queria fugir daquele lugar a todo custo! Em nenhum momento, enquanto esforçava-se para escapar, ela retirou o olhar alucinado do círculo maior que ficava no centro da ampla sala. Alice, observando de perto, não teve dúvidas: a imagem dela era Eleonora quando jovem!

      De súbito, o velho em transe elevou as mãos para cima, alteou a voz rouca e, como num passe de mágica, as chamas das quatro velas engrossaram e aumentaram de tamanho quase chegando a chamuscar os caibros do teto. Aquilo era impossível! Alice começou a rezar apegando-se em promessas a todos os santos que tinha conhecimento. O quarto ficou quente! Eleonora, deitada no altar improvisado, virou o rosto para Alice que foi atingida por um choque de arrepio no corpo inteiro quando encarou os olhos enegrecidos da velha! Eram olhos de um predador esfomeado, seguros, que brilhavam na certeza de que a presa já era de sua propriedade e que a satisfação da fome era apenas de uma questão de tempo!

      Eliseu, trajando  batina  preta de monge, com capuz sobre a cabeça, entrou no quarto segurando um punhal brilhante, de ponta afiada e recurva. Alice começou a soluçar alto abafada pela mordaça. Grunhiu aos prantos por misericórdia! Mal reconheceu o namorado que, de semblante totalmente transfigurado, em transe, assim como o velho Otávio, a ignorava como se ela não passasse de uma barata semelhante as que circulavam perto dela! Da mesma forma que a alma da jovem Eleonora tentava desesperadamente se livrar dos grilhões invisíveis que a prendiam, Alice tentou livrar-se das cordas dos tornozelos e dos punhos retorcendo-se e arqueando o corpo como se estivesse tendo um ataque epilético! Não adiantou nada! As amarras lhe provocaram vergões vermelhos horríveis mas não afrouxaram um milímetro sequer.

      O suposto namorado foi até ao altar onde se estava Eleonora deitada. Fez um gesto de respeito a Otavio tomando-lhe o lugar. O velho, de posse de uma um livro enorme, se afastou de lado recitando versos em língua totalmente estranha.

      — Meu filho! – Eleonora disse orgulhosa. – Faça o que tem de ser feito!

      Eliseu, sem pestanejar, elevou as duas mãos  acima de sua cabeça fechando-as firmes em torno do punhal! “A mulher da janela” debateu-se como se tivesse levado um choque elétrico. As chamas das velas começaram a se desprender fazendo um círculo de fogo acompanhando o círculo desenhado no chão! Um vento quente, oriundo do centro da sala, rodopiou pelo recinto tremeluzindo as chamas das velas! Alice começou a perder as forças, seu coração dava saltos, os olhos ardiam, urinou incontinenti, o soluço do choro começou a engasgar-lhe a garganta que se fechava. A ladainha dos dois homens tornou-se alta e intensa! Estavam, com certeza, invocando algum demônio!

      E ele veio!

      A criatura horrenda, avermelhada, comprida, enorme, emergiu do círculo de fogo de um único rompante! Alice não conseguiu ver a “coisa” de frente porque a mesma, encarava a alma da “mulher da janela” e tentava alcançá-la com as suas poderosas garras. A coitada, tão ou mais apavorada que a própria Alice, negava em gestos com a cabeça e gritava “Não” sem emitir som. Alice engoliu os soluços, obrigou-se a ficar quieta, não se mexeu! Ficou com medo de atrair a besta para o lado dela.

      O demônio resfolegou ansioso, sedento, esfomeado em possuir a vítima indefesa à sua frente. Eliseu, então, emitiu um grito horrível e desferiu o punhal violentamente contra o peito da velha Eleonora. No mesmo instante, como um cachorro vigoroso que se desprende da corrente, a criatura deu um único e certeiro bote: inclinou-se numa velocidade espantosa sobre a pobre alma da mulher e envolvendo as garras no pescoço e cintura dela arrebatou-a para dentro do círculo de fogo, levando-a para baixo, levando-a para sempre!

      A última coisa que Alice viu antes de desmaiar foi  o espectro negro de uma mulher muito bonita, jovem, altiva, arrogante, de sorriso malévolo, deixando o corpo inerte da velha Eleonora que se esvaia em sangue!
 

          Trinta anos se passaram depois daquela fatídica e inesquecível noite. Alice ficou com a casa e não precisou investir muito de si para deixá-la completamente habitável, prazerosa e linda. A casa sempre tivera o seu próprio encanto e brilho! Tudo dentro dela se ajustava ao bom gosto e requinte. Desde os lindos tapetes persas que decoravam o piso de tábuas reluzentes pelo verniz até os extraordinários vitrais que compunham a estética de seu estilo colonial. Uma pérola de moradia! Talvez não o fosse para quem a observasse de fora! Mas para Alice, melhor local para viver em reclusão não poderia existir. Os vínculos que as uniam, ela e a casa, eram indissolúveis. No entanto, naquela noite ela iria embora! Os preparativos já haviam sido providenciados! Olhou assustada para o pentagrama de Baphomet desenhado à tarde no centro da sala de estar sabendo que tinha pouco tempo. Seus pensamentos, de repente, foram interrompidos pelas batidas secas das portas de um carro. Alice viu, apavorada, lá fora, o seu próprio corpo envelhecido pelo tempo voltar-se para a casa e, discretamente, longe das vistas da linda e jovem mulher morena que a acompanhava, aquele rosto, o dela mesmo, emitir o sorriso malévolo devastador. Outros dois homens abandonaram o carro também: o jovem rapaz, um completo desconhecido e o outro era Eliseu, envelhecido também. Alice foi tomada de pânico ao pensar no demónio que iria levá-la para as profundezas desconhecidas. Então, começou a bater com força as janelas da casa e a gritar para a moça morena que acompanhava o trio assassino: “Vá embora! Vá embora enquanto ainda é tempo!”




















 

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