As vigorosas batidas, que vinham da porta da cabana, deixaram o
coração de Thérèse em sobressalto. “Quando Deus nos abandona - pensou
Thérèse -, Lebourreau nos assoma.”
— Quem
bate? – perguntou Thérèse, embora bem soubesse que Lebourreau, com a
lanterna em punho, lançava a sua sombra maligna sobre os umbrais da
pobre choupana.
Thérèse apertou ambos os filhos contra os seios, sentido-lhes a
respiração quente e irregular, típica dos moribundos devastados pela
peste. E, arrastando-se como podia, recolheu-se ao ângulo mais remoto
da parede. “Quando Deus nos abandona - pensou Thérèse -, Lebourreau nos
ilude.” O vento, que se esgueirava pelas frestas de adobe, trouxe
consigo a voz calma e melódica do velho mago:
— Deixe-me entrar. Trago-lhe boas-novas!
De Lebourreau dizia-se, em toda Valônia, que era um bruxo astuto e
poderoso. Ouvira da mãe que aquele ente medonho habitava cemitérios
desolados, onde há séculos praticava sortilégios. Amiúde comentava-se
que, nas noites de plenilúnio, o mago reunia-se com as bruxas e, de
corpos nus, realizavam o sabá. “Quando Deus nos abandona – dizia-lhe a
mãe – ele vem e nos ludibria!”
Há dois dias e o pequeno Jean-Pierre corria livre pelos campos, gozando
a imensidão das planícies e a luminosidade intensa do verão. Mas
viera a peste, tão súbita quanto cruel, e, com o seu beijo nefando,
cobrira o corpo do garoto de pústulas negras e aquosas, cujo odor
desagradável entranhava-se no ar como se arauto da morte certa. E
Cosette, com suas mãozinhas febris, não arredava dos seios maternos. Mas
a menina decompunha-se ainda viva. Do corpo pequeno e desconforme
fluíam emanações mefíticas, tão nauseantes que somente a mãe podia
suportar. Como era avançado o estado de degeneração da criancinha! A
enfermidade avançava célere naquele corpinho disforme. Cosette,
silenciosamente, agonizava.
— Pobre Cosette – disse a mãe, beijando-lhe o rostinho cravejado de pústulas e de grosseiras ulcerações.
— Deixe-me entrar. Ainda há esperanças – o vento trazia a voz melódica
do velho bruxo. – Trago-lhe uma esperança que o seu Deus esqueceu-se
de lhe ofertar.
Jean-Pierre também morreria. Assim como aqueles cruzados que retornaram
de Jerusalém. Mais algumas horas e todas as ulcerações eclodiriam num
ruído surdo, salpicando, à pressão incontrolável da febre sempre
crescente, o líquido asqueroso na atmosfera impregnada de humores
deletérios. O corpo, lacerado por ilhas de carne viva,
precipitar-se-ia para uma tonalidade roxa escura e, então, viria a
inexorável decomposição da pele, da carne e das entranhas. E Cosette,
agora, sangrava por todos os orifícios. Também – e principalmente –
pela abertura do olho que lhe faltava. O outro era morto e oboval,
projetado para fora como o de um camaleão. Cosette nascera cega,
corcunda e coxa. Pobre Cosette, condenada pelo Senhor a deambular
desgraciosamente pelas planícies pedregosas da Valônia, fazendo de sua
muleta uma bengala, e, de ambas, as sua sina, enquanto, curvada ao
peso da corcova, estendia as mãos implorando migalhas dos viajantes.
Não! Melhor assim. Melhor que o bom Deus ceifasse, desde já, um
futuro tão hediondo!
— Entre – respondeu, finalmente, Thérèse.
A porta da choupana se abriu. O vento gemeu e rodopiou nas úmidas
paredes de adobe. O mago entrou. Trazia numa das mãos uma lanterna que
lhe iluminava a sobrepeliz carmim e o capuz escarlate. O luzeiro
iluminou-lhe as faces cavernosas. Thérèse tremeu de pavor. O mago
continuou, com sua voz mansa, que se lhe escapava das ranhuras de uma
fileira de dentes amolados:
— Tenho uma proposta.
— Leve-me. Mas cure os meus filhos.
— Não, não a quero. Quero Cosette. Quero a pequena.
— O que ganharei em troca?
— Jean-Pierre viverá.
Thérèse ponderou. Entregou a pequena.
— Decisão sábia – redargüiu o homem com gravidade. E acrescentou, piscando maliciosamente um olho de coruja:
— De que lhe serviria uma criança aleijada, se sobrevivesse?
Após uma pausa – uma longa e meditativa pausa –, o bruxo concluiu, prazerosamente, com as garras em riste para Cosette:
— Hoje sinto uma grande fome. Arranjar-me-ei bem com ela.
O mago mergulhou a criança nas rubras abas de sua sobrepeliz e saiu.
Atrás de si ficou o farfalhar monótono de uma capa escarlate, sibilante
ao vento que se decompunha em silêncio e se fazia silêncio, enquanto a
solidão, coroada pelo desespero, ficava irremediavelmente para trás.
Então, nesta mesma solidão, que era a imensidão de um casebre, um
arrependimento cruciante reverberou na alma de Thérèse. Cosette! A
pequena e indefesa Cosette! Não seria justo que a peste a levasse, com
seu corpinho repulsivo e disforme, para os campos sepulcrais? Não seria
melhor assim? Se é que esta era a vontade de Deus, haveria por que se
rebelar? Cosette já estava morrendo. Morrendo irremediavelmente. Mas,
entregar Cosette aos dentes anavalhados daquela coisa imunda... Saciar a
sede e a fome de tão abjeta criatura com as vísceras e o sangue
inocente de sua filha... “Quando Deus nos abandona, Lebourreau vem para
nos tentar e iludir...”
— Meu Deus, o que eu fiz? – Bradou Thérèse, na fria escuridão de seu antro.
Thérèse arremessou contra a noite. Ganhou os campos e as planícies,
clamando pela filha. Atirou-se violentamente aos bosques, caminhando
sobre as sendas que se abriam ao fluxo luzidio do luar. E, quando
finalmente amanheceu, e já retornava a casa, corroída pela densidade
de um remorso seco e cáustico, Thérèse vislumbrou, ao longe, algo
oscilar ao sabor da brisa matinal. Era um trapo. Era o corpinho de
sua filha. A garota fora empalada num galho que, inclinado, deitava
reverência ao chão. Traspassada pelo dedo arguto de um arbusto,
Cosette trazia a garganta dilacerada por dentes tumultuosos, e
exibia, mais abaixo, o ventre rasgado por unhas longas e pontiagudas.
Restos de entranhas, revolvidas e despedaçadas, estavam derribados ao
solo forrado de folhas mortas. Mas, algo de surpreendente acontecera! O
corpinho de Cosette ganhara uma nova conformação. Dois belos olhos
azuis, que poderiam perfeitamente enxergar, agora reluziam na face
miúda e bela. A corcova desaparecera e a perna atrofiada recompusera-se
em substância e perfeição.
—Lebourreau a consertou, antes de matá-la. Lebourreau ajeitou a minha
menina só para devorar-lhe o sangue e algo doce de suas entranhas.
Pobre Cosette! – Thérèse balbuciou, enquanto a pequena mão de Cosette,
impelida talvez pelo vento, ou mesmo por uma força sobrenatural, tão
obscura quanto extraordinariamente absurda, buscava, pela última vez, o
calor do seio materno. Thérèse Gritou, ao sentir que a mãozinha do
cadáver comprimia tenazmente o seu peito, ávida de carinhos. Sentiu que
as pernas arqueavam. Que a mente refluía. Que a boca beijava o chão.
Quando voltou a si, depois de um longo pesadelo – que, àquelas alturas,
lhe sabia aos lábios como belos sonhos –, seguido de um
desfalecimento negro e espesso, já anoitecia.
Foram os gritos de Jean-Pierre que trouxeram Thérèse de volta à
consciência. Sim, Jean-Pierre clamava, não muito longe. Gritava pela
mãe, Jean-Pierre. E como gritava! E como eram saudáveis os seus
pequenos pulmões, antes impregnados de peste e purulência! Jean-Pierre
estava vivo. Escapara milagrosamente à morte certa. Lebourreau
cumprira a sua promessa... “Quando Deus nos abandona, Lebourreau...”
Pôs-se, então, a mulher a correr. Percorreu as sendas com os olhos
enevoados por lágrimas tão densas que afundavam nas órbitas e se
recusavam a cair. Por um momento, esqueceu-se completamente de Cosette.
Teria Jean-Pierre só para si. Teria Jean-Pierre curado, livre da febre e
das pústulas nauseantes. Vivo de novo. Novamente vivo e saudável!“
...Lebourreau... nos ajuda!”
Ao chegar à clareira, viu que Jean Pierre equilibrava-se, como um
bêbado, à porta da choupana de adobe. O garoto escapara à peste. Mas...
O garoto caiu.
Thérèse parou. Um choque. Seus pêlos se eriçaram como se atraídos por
uma auréola magnética. Uma auréola que os santos recusam e que os
demônios impõem. E um frio violento, vindo de suas trôpegas entranhas,
sacudia-lhe o corpo e enredava-lhe a alma infeliz, enquanto ouvia o
garoto gritar.
“De que lhe serviria uma criança aleijada, se sobrevivesse?” – a voz
do mago fulminou a mente de Thérèse, que foi ao chão, com o corpo
dominado por longos e dolorosos espasmos.
— Mãe! Mãe, estou cego! - bradava Jean-Pierre.
Thérèse, antes de contorcer-se na lama, vira que o olho direito de
Jean-Pierre já não mais existia. E, com pavor, reparara que o olho
esquerdo do pequerrucho, sujo e embaçado, saltava-lhe da órbita qual
um ovo grotesco.
— Eu não posso andar! – urrava desesperadamente o menino,
irremediavelmente coxo e esmagado por uma corcova medonha, uma
intumescência que lhe vergava o dorso deformado e lhe estufava o peito
à semelhança de um pombo monstruoso.
À semelhança da pequena Cosette.
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