quarta-feira, 7 de março de 2012

A PONTE DO DIABO

 
O medo é um sentimento de viva inquietação ante a noção de um perigo real ou imaginário. Ele tem seus próprios caminhos dentro da alma humana, e acampado diante daquela ponte, eu me perguntava o motivo do calafrio que sentia cada vez que olhava para ela. Era uma antiga ponte de pedra, com cerca de duzentos metros de vão sobre o penhasco. De onde estava podia avistar as horríveis esculturas de demônios alados entalhadas na rocha, a cada cinco metros. O problema é que essa ponte era vigiada por uma divisão do exército alemão. Durante dias estudamos a situação, embrenhados no mato. Sempre que tentávamos atravessá-la nos tornávamos alvos fáceis para a artilharia inimiga, pois ficávamos em campo aberto. Além disso, o tempo estava contra nós. Sabíamos que a intenção dos alemães era nos retardar ao máximo até a chegada de reforços, não podíamos nos demorar ali por mais tempo.
Fui incumbido por nosso comandante, o capitão Serrado, de  encontrar uma alternativa para a travessia, antes que fosse tarde.  Nos embrenhamos na mata, eu e dois soldados, e após meia hora de caminhada avistamos uma pequena cabana. Ela parecia deserta, mas logo que nos identificamos  um homem saiu com os braços erguidos, seguido por duas mulheres. Ao constatar que éramos brasileiros, ele suspirou e nos recebeu alegremente. O soldado Afonso, paulista e descendente de italianos, entabulou uma conversa animada com ele, enquanto a mulher e sua filha nos serviram uma caneca de café.
— Pergunte a ele se existe outro caminho para Fornovo -  pedi ao meu soldado.
Afonso fez a pergunta em italiano e pude perceber pela resposta que aquele era o único caminho num raio de cem quilômetros.
Fiquei desanimado com a notícia. Acabamos o café e nos colocamos de pé, quando o homem chamou Afonso e cochichou algo em seu ouvido.
— Sargento, ele contou uma história escabrosa: a ponte foi projetada na idade média a mando do homem mais poderoso da região. Diz a lenda que ela caiu três vezes, então o construtor foi chamado pelo proprietário e recebeu um ultimato, se a ponte tornasse a cair ele morreria. Desesperado, o homem fez um pacto com o demônio: sua alma em troca da ponte nunca mais cair.
— Bolas, isso é apenas uma lenda, Afonso - Interrompeu o soldado Ribeiro.
— Talvez, mas o fato é que a ponte está aí desde a idade média e isso não é pouco tempo...
Olhei para o homem, que aguardava em silêncio.
— Pergunte o que aconteceu ao construtor.
Afonso ouviu a resposta e traduziu:
— Pulou da ponte, certa noite. Nunca encontraram o corpo. Desde então as pessoas a chamam de A ponte do diabo e evitam o lugar. É uma espécie de maldição. Ele vive aqui há cinqüenta anos e já viu a ponte ser bombardeada várias vezes durante a primeira guerra e resistir a três terremotos.
O italiano disse mais alguma coisa no seu idioma.
— Segundo ele, nós podemos atravessá-la sem medo pois os alemães não conseguirão nos acertar.
— Esse sujeito é louco! - exclamou Ribeiro - Eles jamais errariam um tiro fácil como aquele, só se fossem cegos...
Entendi então o estranho sentimento de medo que me afligia! Desde o princípio notei que havia algo de apavorante com aquela ponte: um pacto fora firmado ali, o lugar era maldito.
Sempre tive o estranho poder de perceber o que ninguém mais percebia. Aquilo me assustava, mas em diversas ocasiões já me salvara a vida. O próprio capitão Serrado conhecia meu segredo, e respeitava minhas opiniões pois reconhecia em mim o dom da visão sobrenatural. Vez por outra conversava comigo acerca de desenvolver esse dom, mas sempre tive medo que  pudesse tomar proporções inimagináveis dentro da minha vida, então preferia ignorar e deixar aquilo adormecido dentro de mim. Mas algumas vezes o dom era maior que o meu medo de manifestá-lo, e vinha à tona como uma espécie de premonição,  algo tão forte que nem mesmo eu conseguia controlá-lo.
— Pergunte se há algo mais.
Afonso obedeceu. O homem olhou para a mulher, empalideceu ligeiramente e tornou a falar.
— Sargento, existe outra lenda a respeito da ponte: quem a atravessa durante a noite não deve olhar para trás ou jamais chegará ao outro lado.
O italiano parecia impressionado com a própria história.
— Mio bambino... - balbuciou.
— O filho dele, sargento... - explicou Afonso - Certa noite voltava do povoado. A família ouviu os gritos, mas quando chegou à ponte encontrou apenas sua bolsa no chão. Aconteceu há três anos e o corpo jamais foi encontrado. Acredita-se que tenha caído da ponte, como vários outros pelos séculos afora...
Fiz questão de apertar a mão do italiano ao me despedir. Ele não sabia, mas estava salvando a vida de centenas de homens.

Contei o que ouvimos ao capitão. Ele me olhou preocupado:
— O que você acha dessa história?
— Bem, capitão - ponderei - parece apenas uma lenda local... Mas creio que existe algo assustador neste lugar. Não gostaria de ficar aqui por muito tempo.
O capitão levantou-se e pôs-se a andar pelo barracão:
— É difícil crer que os alemães errarão um tiro fácil como esse. Estaremos desprotegidos, em campo aberto. Se eles derrubarem a ponte, dificilmente alguém escapará da queda livre...
— Eu sei, capitão.
— E mesmo assim acredita nessa história?
Tive medo de parecer ridículo.
— Sim, capitão, eu acredito.
Ele fez silêncio enquanto pensava, por fim disse-me:
— Convoque os homens. Partiremos antes do amanhecer. E que Deus nos proteja dos alemães... E do diabo.

Às duas da manhã começamos a desmontar o acampamento, tomando o cuidado de não nos expor aos alemães. Passei a tropa em revista e expliquei o que pretendíamos fazer. Percebi o medo estampado no rosto de cada um, mas eram valentes e sabiam que tínhamos que sair dali. Não escondi nada deles, mesmo porque meus companheiros de incursão já deviam ter-se encarregado de espalhar a lenda sobre a ponte do diabo para toda tropa. Ao ser indagado sobre os alemães, respondi para não se preocuparem com eles, apenas deviam lembrar-se de não olhar para trás em hipótese alguma.
— Haja o que houver, não esqueçam: jamais olhem para trás até atingirmos o outro lado, entenderam?
— Sim, senhor! - foi a resposta uníssona.
O final da madrugada veio nos encontrar frente a frente com a ponte. Parado adiante da tropa, observei a movimentação no lado alemão e percebi que eles já estavam à postos, aguardando nosso movimento, talvez não acreditando que estivéssemos dispostos a cometer tal loucura. Meus olhos se dirigiram então para a ponte, duzentos metros de rocha sobre o desfiladeiro. Parecia impossível que ela resistisse intacta ao ataque alemão. Estávamos desafiando uma lógica irrefutável baseados numa simples lenda sem nenhuma comprovação histórica.
— Loucos - sussurrei - Um bando de loucos, isso é o que somos!...
Mesmo assim, levantei  meu braço direito e dei a ordem:
— Atenção pelotão... Avante!...
Alguns fizeram o sinal da cruz, outros apertaram seus amuletos, mas todos começaram a marchar cadenciadamente rumo à ponte. Quanto mais nos aproximávamos dela, mais meus pelos se eriçavam, até que meu coturno tocou sua borda e a primeira bala de canhão alemã passou apenas a cinco metros de nós. À partir daí, uma saraivada de balas de canhões começou a fustigar tudo ao nosso redor. Sentíamos vontade de correr até um abrigo que nos colocasse a salvo, mas continuávamos a nossa marcha inabalável rumo ao outro lado.
Os alemães se desesperaram ao perceber que não conseguiam atingir o alvo. Uma mão invisível parecia fazer com que as balas se perdessem desfiladeiro abaixo.
Eu suava frio. Com o canto dos olhos observava as estranhas criaturas de pedra que pareciam olhar diretamente para nós, talvez à espreita de algum vacilo...
De repente, como num pesadelo, vi uma das horrendas criaturas se desprender da ponte e voar para algum ponto atrás de mim. O meu coração pareceu saltar da boca: teria sido uma ilusão? Olhei para Afonso, que marchava ao meu lado:
— Você viu aquilo?...
Ele não entendeu, parecia mais preocupado com a artilharia pesada.
— Aquilo o quê?
Do lado direito, outra criatura se desprendeu da rocha e voou para o meio da tropa, seguida de uma terceira.
— Meu Deus, o que está acontecendo?...
Então começaram os gritos.
Meu sangue congelou nas veias. Eram gritos pavorosos, lançados por homens que estavam acostumados a enfrentar a morte, mas não conseguiam encarar a face do demônio. Eu tremia de medo e a cada passo que dávamos um novo grito se erguia na madrugada.
— Não parem de marchar - eu berrava - E não olhem para trás, não olhem para trás...
Com o canto dos olhos, vi mais e mais criaturas se desprenderem da maldita ponte e voarem para o meio da tropa, batendo as asas e grasnando como demônios. Um dos soldados passou por mim desesperado, tentando chegar ao outro lado, perseguido por uma das criaturas. Ele gritava como louco, sem acreditar no que via, até que ela o encurralou. O soldado subiu na mureta, deu dois passos num balé impreciso e se precipitou ponte abaixo com um grito horripilante.
Confesso que em  minha vida nunca senti tanto medo quanto naquela noite! O caos tomou conta da tropa, homens se precipitavam no desfiladeiro enquanto balas de canhão passavam zunindo sobre nossas cabeças. Atirávamos nas criaturas, mas era como se elas não existissem. Em dado momento a marcha cadenciada se transformou numa correria desenfreada rumo ao outro lado da ponte. Não tenho vergonha de admitir: corremos pelas nossas vidas naquela noite.
Atravessamos a ponte sem que um único tiro alemão nos atingisse, e no entanto, tivemos tantas baixas quanto se os tivéssemos enfrentado cara a cara. Dos trezentos homens que iniciaram aquela travessia, apenas duzentos e quarenta conseguiram completá-la. Foram duzentos metros que custaram a vida de sessenta soldados, entre elas a do meu amigo  Afonso. Quando já estávamos a salvos do outro lado, abrigados da artilharia alemã, olhamos para trás e vimos as criaturas demoníacas, todas elas, de volta ao seu lugar de origem, como se nunca tivessem se movido dali. Tratamos então de nos afastar o mais depressa possível daquele lugar amaldiçoado.
Até hoje tenho pesadelos com aquela madrugada de terror. Prosseguimos nosso caminho e tomamos Fornovo dos alemães, fazendo milhares de prisioneiros. Enfrentamos outras batalhas até o final da guerra, em muitas das quais o medo foi meu companheiro inseparável, mas nunca, em toda minha longa vida, tornei a sentir uma sensação tão apavorante como a que senti ao atravessar a ponte do diabo.

Sem comentários:

Enviar um comentário