Sentado
sobre esse caixote imundo e semi destruído, eu olho a noite. Há muito o
que ver, mas não o céu. Não a lua. Não as estrelas. É o legado que as
grandes cidades deixaram à natureza.
Nesse beco suburbano, igual a tantos outros onde já estive, a fauna
humana é bastante ativa. Eles não são da minha espécie, e posso
observá-los com a indiferença inerente de quem sabe não ter envolvimento
com seus dramas. Para mim, essas pessoas não são nada.
O
traficante, que fora embora minutos antes. Encerrara seus negócios ali,
sempre esquivo, sempre usando os batentes mais sombrios dos casarios em
ruínas, os buracos mais fétidos. Fora continuar sua sanha destruidora
em outro beco da cidade.
O
bêbado dormia no lugar de sempre, coberto com as caixas de papelão de
sempre. Quem não o conhecesse, não o localizaria em sua camuflagem de
lixo.
As
prostitutas. Também essas eram familiares. Também elas se recolheram,
hoje não haviam clientes. O bairro ao redor do beco estava morrendo, e
elas finalmente começaram a percebê-lo.
E
aquela figura encolhida que apareceu agora. Miúda, muito magra. Eu
possuo excelentes olhos para enxergar na escuridão, e posso ver todos
os detalhes. Olhos enormes, azuis, muito arregalados. Expressão de medo,
e toques de inocência. Há muito tempo não vejo olhos inocentes, e a
curiosidade faz-me observá-la com atenção. A moça pequenina tem as
roupas rasgadas sob o casaco de bom tecido, a maquiagem borrada, sulcos
esbranquiçados dos olhos ao queixo, denunciando o percurso das lágrimas.
Anda trôpega, com um ar espantadiço, como se estivesse em choque.
Provavelmente está mesmo. Assaltada ? Estuprada ? Ambos ? Naquele
momento, nem ela deve ser capaz de dizer.
A moça finalmente para, oscilando, a uns 15 metros de mim. Ela não me
percebe, eu escolhi um canto particularmente escuro do beco. Assim ela
permanece, durante um bom tempo, apenas abraçando-se e balançando,
sozinha e perdida naquele beco sórdido.
Subitamente.... ação, movimento!
Rápido demais para olhos humanos perceberem, mas não para mim.
Uma sensação de frio, um arrepio que percorre minha espinha de alto a baixo.
A moça à minha frente some.
Não...
não some, não. Está encoberta, percebo logo, pela presença que acaba de
chegar. Aquela presença selvagem, brutal, maligna, aquela figura de
homem alta, sombria, vestida de negro, embora eu saiba não se tratar de
um humano.
Ele
a cerca, sussurrando em seu ouvido, tão baixo que mesmo meus ouvidos
sensíveis não podem ouvir o teor da conversa. Ela se curva para trás,
sensual, o medo desaparecendo dos olhos. Com as mãos, afasta a gola do
casaco e abre os botões superiores da blusa rasgada.
Ele se inclina, ela aquiesce. Seus olhos estão sonhadores agora.
O
homem a morde. Com força. Ela finalmente percebe que está em perigo,
grita, mas é tarde. Ele já está mergulhado em seu pescoço, e finalmente
posso ouvir sons. Indiferente, reconheço o estraçalhamento de ossos,
músculos e tendões, seguido por um sugar sôfrego.
Ela
para de se debater, e seus olhos não possuem mais a chama da vida. Ele a
larga no chão, como uma boneca de trapos velha. Ele se vira, e percebe
minha presença.
Olhamo-nos
nos olhos, e eu enfim o reconheço. Somos predadores da noite, os dois.
Nossa meta é a sobrevivência, e o egoísmo é nosso irmão. A noite é
também nossa cúmplice, escondendo-nos dos olhos mortais do mundo. Minha
espécie já foi venerada, a dele também. Agora somos parte de um mundo
esquecido pelos humanos, e não merecemos um segundo olhar. Só somos
vistos quando nossa sobrevivência obriga-nos a cruzar nossos caminhos
com os deles.
Pelos
olhos da criatura à minha frente, percebo que ele também sente nossa
irmandade. Ele não irá fazer-me mal. Um segundo depois, ele não está
mais aqui.
O bêbado resmunga baixinho, vira-se de lado e volta a dormir.E
eu espreguiço-me confortavelmente, levanto-me do caixote e, com um
salto gracioso, vou em busca de outros da minha espécie. Sou um gato de
rua, e os destinos dos humanos não me interessam.
Ahhhh que bela noite enluarada ! Essas são as melhores....
Noite escura, noite negra.
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