Tu aí que me olhas... é... tu mesmo, com esta cara expressando
repugnância. Achas que estou assim, deste jeito, por que eu quero? Não,
senhor! Dizem os mais velhos que antigamente ser vampiro tinha lá o seu
“glamour”. Dizem que a verdadeira aparência de um vampiro se escondia
por detrás de uma excelente e sedutora estampa. Tudo sustentado, é
claro, pelo sangue vermelho e apetitoso dos incautos da noite. Mas
agora, olhando para os escombros da cidade lá embaixo, não vislumbro
absolutamente nada do que me contaram das antigas histórias. Nunca tive o
prazer de beber sangue vermelho e consistente... até hoje!!!
Quero te contar, em poucas palavras, o que me acontece. Quero te
explicar, antes que eu abandone este mundo nojento, o que me levou a
subir este velho edifício na tentativa de buscar abrigo justamente aqui.
Gosto muito deste lugar. É o meu local predileto de meditação e,
infelizmente, por ironia do destino, torna-se-á, esta marquise, meu
cadafalso: o instrumento inglório de minha execução. Sendo tu, uma
criatura alienígena totalmente isenta da deterioração execrável deste
planeta, bem podeis estar se perguntando: o mundo do jeito que está,
tomado por vampiros, não é melhor para você? E aí eu te respondo: é
claro que não. O mundo infestado pela população de vampiros, onde “os
humanos” de sangue vermelho e quente contam-se nos dedos de uma das
mãos, é uma merda. Sim, senhor. Um grande e enorme amontoado de bosta.
Sem mais delongas, preciso te explicar como os fatos se sucederam até o
presente momento, porque já vejo no teu semblante a tua impaciência. Tu
estás com pressa também por averiguar as artérias entupidas desta
Necrópole. Não há muito o que ver, eu te garanto. Somos o que somos:
criaturas em decadência que se entredevoram sem o prazer de antes. Não
vou me ater em como foi que a população se transformou no que somos
hoje, porém ofereço-te um vislumbre do que se pretende fazer para se
retornar aos velhos e bons tempos.
Meu nome é Gorki, um vampirinho qualquer, sem eira nem beira, a quem
foi incumbido de salvaguardar quatro “pessoas” de sangue quente. O clã a
qual pertenço vê como única saída para a nossa salvação o estímulo da
reprodução humana. Eles, “os humanos”, precisam se multiplicar novamente
para que venham a ter no futuro a mesma serventia que tinham para nós
no passado: vasilhames acondicionados do mais puro mel vermelho! O
líquido precioso e adocicado que nos enche de prazer, nos revigora e nos
embeleza como verdadeiros príncipes, costumam dizer os vampiros
mestres. Sem eles, “os de sangue vermelho e quente”, estamos condenados
a uma existência medíocre e sofrida, absorvendo migalhas que se
escondem nos esgotos... uhg... ratos são horríveis. Quando eles nos
faltam, os roedores, somos obrigados a sugar os companheiros mais
fragilizados, mas nem de longe, dizem os mais velhos, o líquido espesso,
escuro e frio que corre em nossas veias se compara ao vermelho morno de
outrora.
Mas deixe-me continuar... pois bem, Os Arkons, um clã que pouco se
importa com o nosso destino, uma vez que, se nada for feito, iremos nos
destroçar mutuamente até que o último fique de pé, descobriu estes
raros espécimes humanos escondidos nos recônditos mais profundos de um
velho "bunker" antinuclear. Os membros mais fortes de meu clã,
os Dracônius, guerreiros de boa cepa, muitos deles vampiros experientes
de 200, 300 anos de idade, decidiram proteger os casais de “humanos”
para serem levados à outra cidade, onde se lhes poderia oferecer
condições tranquilas de acasalamento. A produção, como tu deves bem
saber, é lenta, porém temos a longevidade dos anos a nosso favor. O que
nos falta é paciência para esperar os frutos deste investimento.
Delegaram-me, portanto, a missão de protegê-los com a minha própria
vida, se preciso fosse, enquanto a luta entre as duas facções estivesse
em andamento.
Os quatro “humanos” foram acorrentados à parede. Ficamos protegidos
numa das salas do abrigo subterrâneo. Nem sei direito como tudo foi
desembocar para o incidente que me condenou. A mulher mais nova era
linda, sabe? No entanto não foi a beleza física dela que me atraiu. Não!
Não foi, não. Foi uma sensação que nunca havia sentido antes até
porque, cumpre registrar, também nunca havia ficado perto de uma
criatura superior de sangue quente. E posso te garantir: foi a
experiência mais inebriante que tive em toda a minha vida. Tu podes até
não acreditar, mas segui os conselhos do velho Iago, o mestre
vampiro-mor: “fique longe deles e não os olhe demoradamente”.
E assim o fiz.
Desviei os olhos deles o tempo todo, apenas ouvindo a ladainha das duas
mulheres amedrontadas. De início, nos primeiros minutos, nada senti,
mas à medida que o barulho do embate lá fora ia diminuindo, um cheiro
irresistível e inefável começou a impregnar o ar! Huuumm... o que era
aquilo? Minha boca, de repente, encheu-se d’água, minha língua,
enegrecida pelo gosto dos ratos pestilentos, começou a estalar
incontinenti, meu estômago revirou-se agitado. Acredite! Toda a
estrutura minguada das carnes e ossos que me sustentam vibraram
intermitente no compasso da batida do coração da “humana” mais próxima
de mim. Voltei-me hipnotizado para ela.
E o que vi me deixou atônito, quase sem ar!
O rosto, os braços, as pernas, o pescoço, partes do corpo daquela
mulher, não cobertas pela roupa desbotada, ganharam uma tonalidade bem
mais clara e transparente! Luminosa eu diria! Sim! Luminosa! Como se...
como se... talvez a descrição não seja a mais apropriada... bem... como
se a criatura tivesse uma lâmpada interna acesa dentro de si! Pude ver
com clareza, tenhas certeza disso, destacando-se na luminescência da
pele, as centenas e centenas de ramificações que compunham a rede de
veias por onde fluíam o tal líquido precioso de que tanto ouvira falar: o
puro mel vermelho! Sim! Te afirmo e não faço meias palavras. Eu podia
vê-lo fluindo graciosamente dentro daquela fêmea. Fico emocionado só de
falar. Pela primeira vez na vida, porque sou jovem e já nasci vampiro,
pude presenciar semelhante fenômeno. Tenho certeza que esta falta de
experiência selou meu destino.
“Os de sangue quente” perceberam o meu estado de ebulição. Começaram a
se agitar tentando se desvencilhar das correntes. Tolos. A mulher, a
quem encarava sem perder o foco, expressava pânico em seus olhos
arregalados quando percebeu que a baba do desejo me escorria abundante
pelos cantos da boca. Quis impressioná-la. Arreganhei selvagemmente os
meus dentes pontiagudos, sentindo-os projetarem-se de forma pouco comum.
Emiti meu urro de guerra! Ela saltou contra a parede assustada. As
pernas lhe faltaram e ajoelhou-se implorando pela vida. Foi engraçado (
rs, rs, rs ). Não senti pena, nem remorso. Senti fome. Muita fome.
E ataquei!
Sempre soube que um dia eu me saciaria do mel vermelho. Muitas vezes,
aqui mesmo, nesta marquise, folheei antigas revistas onde via imagens de
vampiros charmosos sugando o pescoço de lindas mulheres entregues
docemente aos seus encantos. Ficava sonhando, sabe? Ficava imaginando
degustar vagarosamente aquele momento. No entanto, devo reconhecer que
não fui nem um pouco delicado com as minhas primeiras vítimas “humanas”.
O companheiro dela quis protegê-la jogando-se de encontro a mim. Não
tomei conhecimento. Minhas garras afiadas cortaram-lhe a garganta de um
único golpe. Ele cambaleou para trás alguns passos e desabou no piso
encardido do quarto. Tentou desesperadamente estancar a hemorragia.
Imbecil! O cheiro e a visão do sangue avermelhado invadiu as minhas
narinas de forma avassaladora. Destruiu a minha razão! Investi minhas
necessidades em cima da mulher. O terror dela foi tanto que não chegou a
gritar. As cenas artísticas de um vampiro charmoso sugando a presa nem
me passaram pela cabeça. Não. Foi uma bocada só. Firme. Certeira. Enfiei
todos os meus dentes na carne macia e suculenta, apertei e retirei um
naco do pescoço dela cuspindo-o em seguida para o lado. A carótida
espirrou o mel vermelho a metros de distância e abocanhei o ferimento
novamente bebendo tudo em fartos goles pulsantes.
O gosto do mel vermelho? Humm... Tu não tens a menor noção. Foi
indescritível. Ficaria horas e horas aqui falando sobre o prazer que
percorreu todo o meu corpo.
E tu pensas que me contentei apenas com a mulher? Não! Queria mais,
apesar de estar saciado. Queria experimentar o sangue dos outros para
ver se o gosto e a textura mudava de um corpo para o outro. Como te
disse: perdi completamente a razão. Matei todos!
Assim que me dei conta da besteira que havia feito sabia que estava
condenado. “Os de sangue quente” são raríssimos de encontrar. Tanto isto
é verdade que, apesar dos parcos 25 anos que tenho, nunca vira um deles
pessoalmente. Por isso, não pensei duas vezes em sair rapidamente do
abrigo nuclear e fugir da cidade que tanto gosto. Quando cheguei à
superfície para ganhar a direção da fuga, o combate mortal entre os clãs
se dava próximo à entrada do abrigo. O mel vermelho que me encharcava o
corpo chamou atenção de todos por causa do cheiro, levado até eles
pelos ventos que ainda correm frouxos esta noite. Não ousei olhar para
trás! Fugi tal qual um rato costuma fugir para não ser devorado por um
vampiro esfomeado. Eles desistiram da luta, até porque não havia mais
pelo que lutar e me vieram no encalço.
É isso.
Consegui chegar até aqui incólume. Subi rápido como uma flecha todos
estes andares. Tranquei a porta que dá acesso a esta marquise e sei que
os mestres vampiros, depois de tentarem arrombá-la, desistiram e fizeram
o mesmo comigo. Pregaram a porta pelo lado de dentro. É a minha
punição. Agora, eles apenas aguardam o meu fim.
Tu estranhas porque, a despeito de meu desespero, percebes em meus
lábios um tênue sorriso, não é? É engraçado mesmo a minha situação.
Sempre ouvi atentamente as histórias de minha raça quando éramos poucos
sobre esta terra. Ouvi histórias sobre nossas qualidades, nossos pontos
fracos, nossas habilidades e os mitos daí decorrentes. Contam alguns, em
tom nostágico, que podíamos nos transformar em morcegos e alçar vôo
para onde quiséssemos. Ahhh... que bom pudesse eu fazer isso agora. Mas,
qual o quê! Tenho medo de alturas e tal habilidade, sei perfeitamente, é
uma quimera. Por outro lado há coisas em nossa natureza que são
imutáveis. A luz solar, por exemplo, ainda é um instrumento de morte
extremamente cruel e doloroso para nós.
Por isso, olhes atentamente para além daqueles edifícios de arquitetura
pontiaguda. Tu estás vendo? É a partir de lá que daqui a alguns minutos
os primeiros raios de sol irão transpor as espessas nuvens negras
radioativas e irão varrer, em velocidade lenta e gradativa, as artérias
desta cidade despedaçada. Vou morrer do pior jeito. Todos nós temos
muito medo de morrer assim. Talvez seja esta a única coisa que os
membros de nossa raça sempre invejaram nos “humanos”. Onde eles viam
uma imagem bela ao nascer do dia, nós sempre vimos à morte e a
condenação eterna de buscar a escuridão.
Portanto, é chegada a hora. Já começo a sentir as horríveis
queimaduras. Afasta-te de mim e olhes para o outro lado porque o que me
aguarda não é um espetáculo bonito de se ver...
********************
Naquele fatídico início de manhã conta-se que não se soube com quem
Gorki falava. Não se tinha certeza se ele falava realmente com um
alienígena, vindo de uma galáxia distante ou se a sua mente, deturpada
de tanto sugar sangue de rato, travava conversa com um amigo imaginário.
O único fato certo em toda esta história é que naquela manhã os ventos
fortes espalharam as cinzas de Gorki por sobre a cidade decadente e
deserta. O vampirinho sem eira nem beira tornava-se apenas cinzas.
Nada mais que cinzas ao vento!
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