quarta-feira, 7 de março de 2012

Mel Vermelho

 
      Tu aí que me olhas... é... tu mesmo, com esta cara expressando repugnância. Achas que estou assim, deste jeito, por que eu quero? Não, senhor! Dizem os mais velhos que antigamente ser vampiro tinha lá o seu “glamour”. Dizem que a verdadeira aparência de um vampiro se escondia por detrás de uma excelente e sedutora estampa. Tudo sustentado, é claro, pelo sangue vermelho e apetitoso dos incautos da noite. Mas agora, olhando para os escombros da cidade lá embaixo, não vislumbro absolutamente nada do que me contaram das antigas histórias. Nunca tive o prazer de beber sangue vermelho e consistente... até hoje!!! 
      Quero te contar, em poucas palavras, o que me acontece. Quero te explicar, antes que eu abandone este mundo nojento, o que me levou a subir este velho edifício na tentativa de buscar abrigo justamente aqui. Gosto muito deste lugar. É o meu local predileto de meditação e, infelizmente, por ironia do destino, torna-se-á, esta marquise, meu cadafalso: o instrumento inglório de minha execução. Sendo tu, uma criatura alienígena totalmente isenta da deterioração execrável deste planeta, bem podeis estar se perguntando: o mundo do jeito que está, tomado por vampiros, não é melhor para você?  E aí eu te respondo: é claro que não. O mundo infestado pela população de vampiros, onde “os humanos” de sangue vermelho e quente contam-se nos dedos de uma das mãos, é uma merda. Sim, senhor. Um grande e enorme amontoado de bosta.
      Sem mais delongas, preciso te explicar como os fatos se sucederam até o presente momento, porque já vejo no teu semblante a tua impaciência. Tu estás com pressa também por averiguar as artérias entupidas desta Necrópole. Não há muito o que ver, eu te garanto. Somos o que somos: criaturas em decadência que se entredevoram sem o prazer de antes. Não vou me ater em como foi que a população se transformou no que somos hoje, porém ofereço-te um vislumbre do que se pretende fazer para se retornar aos velhos e bons tempos. 
      Meu nome é Gorki, um vampirinho qualquer, sem eira nem beira, a quem foi incumbido de salvaguardar quatro “pessoas” de sangue quente. O clã a qual pertenço vê como única saída para a nossa salvação o estímulo da reprodução humana. Eles, “os humanos”, precisam se multiplicar novamente para que venham a ter no futuro a mesma serventia que tinham para nós no passado: vasilhames acondicionados do mais puro mel vermelho! O líquido precioso e adocicado que nos enche de prazer, nos revigora e nos embeleza como verdadeiros príncipes, costumam dizer os vampiros mestres.  Sem eles, “os de sangue vermelho e quente”, estamos condenados a uma existência medíocre e sofrida, absorvendo migalhas que se escondem nos esgotos... uhg... ratos são horríveis. Quando eles nos faltam, os roedores, somos obrigados a sugar os companheiros mais fragilizados, mas nem de longe, dizem os mais velhos, o líquido espesso, escuro e frio que corre em nossas veias se compara ao vermelho morno de outrora.
      Mas deixe-me continuar... pois bem, Os Arkons, um clã que pouco se importa com o nosso destino, uma vez que, se nada for feito,  iremos nos destroçar mutuamente até que o último fique de pé, descobriu estes raros espécimes humanos escondidos nos recônditos mais profundos de um velho "bunker"  antinuclear. Os membros mais fortes de meu clã, os Dracônius, guerreiros de boa cepa, muitos deles vampiros experientes de 200, 300 anos de idade, decidiram proteger os casais de “humanos” para serem levados à outra cidade, onde se lhes poderia oferecer condições tranquilas de acasalamento. A produção, como tu deves bem saber, é lenta, porém temos a longevidade dos anos a nosso favor. O que nos falta é paciência para esperar os frutos deste investimento. Delegaram-me, portanto, a missão de protegê-los com a minha própria vida, se preciso fosse, enquanto a luta entre as duas facções estivesse em andamento.
      Os quatro “humanos” foram acorrentados à parede. Ficamos protegidos numa das salas do abrigo subterrâneo. Nem sei direito como tudo foi desembocar para o incidente que me condenou. A mulher mais nova era linda, sabe? No entanto não foi a beleza física dela que me atraiu. Não! Não foi, não. Foi uma sensação que nunca havia sentido antes até porque, cumpre registrar, também nunca havia ficado perto de uma criatura superior de sangue quente. E posso te garantir: foi a experiência mais inebriante que tive em toda a minha vida. Tu podes até não acreditar, mas segui os conselhos do velho Iago, o mestre vampiro-mor: “fique longe deles e não os olhe demoradamente”.  
      E assim o fiz.
      Desviei os olhos deles o tempo todo, apenas ouvindo a ladainha das duas mulheres amedrontadas. De início, nos primeiros minutos, nada senti, mas à medida que o barulho do embate lá fora ia diminuindo, um cheiro irresistível e inefável começou a impregnar o ar! Huuumm... o que era aquilo? Minha boca, de repente, encheu-se d’água, minha língua, enegrecida pelo gosto dos ratos pestilentos, começou a estalar incontinenti, meu estômago revirou-se agitado. Acredite!  Toda a estrutura minguada das carnes e ossos que me sustentam vibraram intermitente no compasso da batida do coração da “humana” mais próxima de mim. Voltei-me hipnotizado para ela.  
      E o que vi me deixou atônito, quase sem ar!
      O rosto, os braços, as pernas, o pescoço, partes do corpo daquela mulher, não cobertas pela roupa desbotada, ganharam uma tonalidade bem mais clara e transparente! Luminosa eu diria! Sim! Luminosa! Como se... como se... talvez a descrição não seja a mais apropriada...  bem... como se a criatura tivesse uma lâmpada interna acesa dentro de si! Pude ver com clareza, tenhas certeza disso, destacando-se na luminescência da pele, as centenas e centenas de ramificações que compunham a rede de veias por onde fluíam o tal líquido precioso de que tanto ouvira falar: o puro mel vermelho! Sim! Te afirmo e não faço meias palavras. Eu podia vê-lo fluindo graciosamente dentro daquela fêmea. Fico emocionado só de falar. Pela primeira vez na vida, porque sou jovem e já nasci vampiro, pude presenciar semelhante fenômeno. Tenho certeza que esta falta de experiência selou meu destino. 
      “Os de sangue quente” perceberam o meu estado de ebulição.  Começaram a se agitar tentando se desvencilhar das correntes. Tolos. A mulher, a quem encarava sem perder o foco, expressava pânico em seus olhos arregalados quando percebeu que a baba do desejo me escorria abundante pelos cantos da boca. Quis impressioná-la. Arreganhei selvagemmente os meus dentes pontiagudos, sentindo-os projetarem-se de forma pouco comum. Emiti meu urro de guerra! Ela saltou contra a parede assustada. As pernas lhe faltaram e ajoelhou-se implorando pela vida. Foi engraçado ( rs, rs, rs ). Não senti pena, nem remorso. Senti fome. Muita fome.
      E ataquei!
      Sempre soube que um dia eu me saciaria do mel vermelho. Muitas vezes, aqui mesmo, nesta marquise, folheei antigas revistas onde via imagens de vampiros charmosos sugando o pescoço de lindas mulheres entregues docemente aos seus encantos. Ficava sonhando, sabe? Ficava imaginando degustar vagarosamente aquele momento. No entanto, devo reconhecer que não fui nem um pouco delicado com as minhas primeiras vítimas “humanas”. O companheiro dela quis protegê-la jogando-se de encontro a mim. Não tomei conhecimento. Minhas garras afiadas cortaram-lhe a garganta de um único golpe. Ele cambaleou para trás alguns passos e desabou no piso encardido do quarto.  Tentou desesperadamente estancar a hemorragia. Imbecil! O cheiro e a visão do sangue avermelhado invadiu as minhas narinas de forma avassaladora. Destruiu a minha razão! Investi minhas necessidades em cima da mulher. O terror dela foi tanto que não chegou a gritar. As cenas artísticas de um vampiro charmoso sugando a presa nem me passaram pela cabeça. Não. Foi uma bocada só. Firme. Certeira. Enfiei todos os meus dentes na carne macia e suculenta, apertei e retirei um naco do pescoço dela cuspindo-o em seguida para o lado. A carótida espirrou o mel vermelho a metros de distância e abocanhei o ferimento novamente bebendo tudo em fartos goles pulsantes.  
      O gosto do mel vermelho? Humm... Tu não tens a menor noção. Foi indescritível. Ficaria horas e horas aqui falando sobre o prazer que percorreu todo o meu corpo.
      E tu pensas que me contentei apenas com a mulher? Não! Queria mais, apesar de estar saciado. Queria experimentar o sangue dos outros para ver se o gosto e a textura mudava de um corpo para o outro. Como te disse: perdi completamente a razão.  Matei todos! 
      Assim que me dei conta da besteira que havia feito sabia que estava condenado. “Os de sangue quente” são raríssimos de encontrar. Tanto isto é verdade que, apesar dos parcos 25 anos que tenho, nunca vira um deles pessoalmente. Por isso, não pensei duas vezes em sair rapidamente do abrigo nuclear e fugir da cidade que tanto gosto. Quando cheguei à superfície para ganhar a direção da fuga, o combate mortal entre os clãs se dava próximo à entrada do abrigo. O mel vermelho que me encharcava o corpo chamou atenção de todos por causa do cheiro, levado até eles pelos ventos que ainda correm frouxos esta noite. Não ousei olhar para trás! Fugi tal qual um rato costuma fugir para não ser devorado por um vampiro esfomeado. Eles desistiram da luta, até porque não havia mais pelo que lutar e me vieram no encalço.
      É isso.  
      Consegui chegar até aqui incólume. Subi rápido como uma flecha todos estes andares. Tranquei a porta que dá acesso a esta marquise e sei que os mestres vampiros, depois de tentarem arrombá-la, desistiram e fizeram o mesmo comigo. Pregaram a porta pelo lado de dentro. É a minha punição. Agora, eles apenas aguardam o meu fim.
      Tu estranhas porque, a despeito de meu desespero, percebes em meus lábios um tênue sorriso, não é? É engraçado mesmo a minha situação. Sempre ouvi atentamente as histórias de minha raça quando éramos poucos sobre esta terra. Ouvi histórias sobre nossas qualidades, nossos pontos fracos, nossas habilidades e os mitos daí decorrentes. Contam alguns, em tom nostágico, que podíamos nos transformar em morcegos e alçar vôo para onde quiséssemos. Ahhh... que bom pudesse eu fazer isso agora. Mas, qual o quê! Tenho medo de alturas e tal habilidade, sei perfeitamente, é uma quimera. Por outro lado há coisas em nossa natureza que são imutáveis. A luz solar, por exemplo, ainda é um instrumento de morte extremamente cruel e doloroso para nós. 
      Por isso, olhes atentamente para além daqueles edifícios de arquitetura pontiaguda. Tu estás vendo? É a partir de lá que daqui a alguns minutos os primeiros raios de sol irão transpor as espessas nuvens negras radioativas e irão varrer, em velocidade lenta e gradativa, as artérias desta cidade despedaçada. Vou morrer do pior jeito. Todos nós temos muito medo de morrer assim. Talvez seja esta a única coisa que os membros de nossa raça sempre invejaram nos “humanos”.   Onde eles viam uma imagem bela ao nascer do dia, nós sempre vimos à morte e a condenação eterna de buscar a escuridão.
      Portanto, é chegada a hora. Já começo a sentir as horríveis queimaduras. Afasta-te de mim e olhes para o outro lado porque o que me aguarda não é um espetáculo bonito de se ver...

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      Naquele fatídico início de manhã conta-se que não se soube com quem Gorki falava. Não se tinha certeza se ele falava realmente com um alienígena, vindo de uma galáxia distante ou se a sua mente, deturpada de tanto sugar sangue de rato, travava conversa com um amigo imaginário. O único fato certo em toda esta história é que naquela manhã os ventos fortes espalharam as cinzas de Gorki por sobre a cidade decadente e deserta. O vampirinho sem eira nem beira tornava-se apenas cinzas.
      Nada mais que cinzas ao vento!

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