Nuvens negras se avolumavam no horizonte. Hugo olhou à volta, à procura
de abrigo. O vento soprava forte, uivando. Ao longe, numa região
abandonada do horizonte, parecia haver uma casa. Talvez conseguisse
chegar a tempo, se corresse. Amaldiçoou a mochila, que pesava nas
costas. Os tênis também estavam gastos na sola, dificultando a corrida.
Atrapalhado pelo cabelo esvoaçante, ele olhou para trás: as nuvens
compactas continuavam avançando como uma nave gigantesca, pronta para
pousar. Houve um silêncio só quebrado pela respiração ofegante e pelo
trotar da corrida . A natureza permaneceu assim, muda, até que
começassem a cair os primeiros pingos de chuva.
Hugo já estava parcialmente molhado quando alcançou a varanda do
casarão antigo. Encostou ofegante em uma das vigas que sustentavam o
teto. A madeira rangeu. Ele respirou fundo, inspirando pelas narinas e
soltando pela boca. Fez isso até que o coração diminuísse as batidas. Só
depois entrou na casa.
O casarão devia ter sido construído há bem mais de um século. Talvez
dois. Incrivelmente, podia-se observar ainda alguns móveis não
destruídos pelo tempo. Viu uma pintura , um retrato oval pendurado na
parede de uma das salas. Representava uma mulher incrivelmente branca,
de uma beleza angelical. Tinha lábios pálidos e olhos de morta. Teria
ficado horas lá, observando o retrato, se não tivesse necessidades mais
preeminentes. Tinha fome.
Andando com cuidado, temeroso de que o chão pudesse ceder com seus
passos, Hugo percorreu vários cômodos até chegar à cozinha . Havia um
fogão à lenha no compartimento. Examinou-o. No meio da poeira e das
telhas de aranhas achou um livro. Tinha uma parte da capa e da folha de
rosto queimados, mas o miolo se conservara quase que completamente
intacto. As paginas, num papel grosso, não ultrapassavam 50 e a maior
parte ainda estava em branco, como pôde verificar ao acender um fósforo.
Em todo caso, era providencial. O papel viria bem a calhar na confecção
da fogueira.
Hugo recolheu alguns restos de madeira dos móveis e pôs ao lado do
fogão. Desfez alguns, os mais podres, com um canivete. Arrancou algumas
paginas do livro. Amassou o papel e rodeou-o de pequenos gravetos.
Inflamou-os rapidamente com um fósforo que tirou da mochila. Continuou
arrancado paginas e alimentando o fogo até que ele se tornasse forte.
Lá fora a chuva continuava. Raios tremendos iluminavam a cozinha
através da janela de madeira destroçada. Hugo retirou da mochila uma
raiz de mandioca, descascou-a e colocou sobre o fogo. Durante dias
aquilo havia sido seu único alimento, desde que roubara as raízes numa
plantação de beira de estrada. Enquanto esperava que a mandioca assasse,
sentou numa cadeira. Foi quando seus olhos deram com o livro. Observou
que não havia mexido na parte manuscrita. Assim, pegou-o, afim de se
distrair enquanto esperava. Como já percebera antes, apenas algumas
poucas páginas estavam escrita, numa letra inconstante.
Leu :
"Conheci
Elizabeth enquanto estudava na Europa . Fora-me apresentada por uns
amigos. Encantei-me com ela. Sua pele era de uma brancura indizível.
Tinhas cabelos negros, olhos da mesma cor e era muito magra. Mas, ah,
que bela e que misteriosa que era! Ver seus lábios brancos se abrindo
era um deleite para poucos. Pouco falava e dificilmente sorria.
Apesar da timidez de ambos, enamorei-me dela e decidi trazê-la comigo
para o Brasil quando tive notícias da morte de meu pai. Que eu soubesse,
não havia qualquer impedimento da parte de Elizabeth... Até então
vivera em pequenas pensões, sozinha . Não tinha família, ou, se tivesse,
deviam ter sido esquecido dela.
O fato é que alegrou-se com o convite. Estávamos apaixonados e a
perspectiva de vivermos juntos nos deixava imensamente felizes. Já na
viagem arrependi-me. Elizabeth enjoara com o mar e passava quase todo o
tempo no camarote, de cama.
O navio em que viajávamos levava também uma carga de cavalos. Eram
animais de raça, encomendados por algum rico fazendeiro do Império. Foi
com eles que aconteceu o único incidente digno de nota em toda a
jornada. Certa noite, agitaram-se todos no porão. Relinchavam e batiam
os cascos na madeira do navio. A algazarra chamou atenção de toda a
tripulação. Vários marinheiros desceram rapidamente para o porão. Quando
lá chegaram o barulho diminuíra. Os animais, no entanto, ainda estavam
nervosos, ao redor de um deles caído no chão. Estava morto. Os pelos do
pescoço e a parte da cabeça estavam encharcados de sangue.
Foram cogitados milhares de hipóteses para a morte do animal. Talvez
estivesse doente e batera no casco do navio, talvez houvesse sido
atacado pelos outros... O mistério, entretanto, persistiu.
Estranhamente, Elizabeth passou a se sentir melhor desse dia em diante.
Fazia até caminhadas pelo convés do navio, algo de todo inconcebível há
algum tempo.
Desembarcamos no Rio de Janeiro e levamos ainda algum tempo viajando
até esta fazenda. Minha mãe, vestida de luto, esperáva-nos. Menti para
ele que havia me casado com Elizabeth em Portugal, mas nem isso foi
capaz de convencê-la. Tinha uma estranha aversão por minha esposa.
Persignava-se sempre que a via. Talvez já adivinhasse a própria morte.
Eu desci ao túmulo um mês depois de ter checado à fazenda.
Tinha temores de que Elizabeth lhe seguisse o caminho. Comia pouco e estava cada vez mais magra.
Foi por esses tempos que ocorreu um incêndio revelador. Um dos escravos
se rebelava contra o capataz, atacando-o . O pobre homem teria morrido,
não fosse a providencial ajuda de outros empregados. Achei que fazia
bem em dar uma demonstração de força e garantir minha autoridade.
Mandei prender o escravo ao pelourinho e fiz com que o chicoteassem. O
negro aguentou firme, mas, à medida que as tiras de couro começaram a
arrancar espirros de sangue, entrou a gritar de dor. Elizabeth assistia a
tudo impassível , embora seus olhos brilhassem como se estivessem
grande interesse no episódio.
De madrugada, eu estranhei que Elizabeth não estivesse do meu lado.
Procurando por ela, assomei à janela e percebi um vulto branco se
movimentando lá fora. Apressei-me. Desci as escadas e abri as portas da
frente da casa-grande.
O que vi me deixou paralisado! Elizabeth estava lá fora, junto ao
pelourinho. Lambia as feridas ensanguentadas do negro. Senti nojo.
Dominando meu ciúme, lembrei-me do episódio do navio, com os cavalos, e
de como ela se sentira bem no dia seguinte. Antigas lendas me vieram à
mente. Historias de pessoas que necessitavam de sangue ... Algum tempo
depois ela voltou para casa. Fingi que estava dormindo.
Minhas suspeitas se confirmaram no dia seguinte: Elizabeth estava exultante, como se tivesse renascido.
Esperei até que anoitecesse. Quando nos preparávamos para dormir,
retirei da gaveta uma adaga e cortei próximo ao pulso. Aproximei-me de
Elizabeth, estendendo-lhe o ferimento. Ela inicialmente fingiu repulsa,
mas seus olhos brilhavam. Como que dominada por um instinto indomável ,
Elizabeth puxou meu braço e passou a lamber o corte. Jamais a vi tão
feliz, com o liquido rubro a escorrer-lhe da boca. Nos amamos como
nunca.
A parti de então, todas as noites realizávamos o mesmo ritual.
Entretanto, o que para ela era vida, ia se tornando morte para mim.
Percebi, assim, que meu sangue jamais seria suficiente.
Embora a medida me causasse repugnância, passei a ordenar que toda
noite me fosse trazida uma escrava ou escravo. A pobre criatura era
amordaçada, amarrada e vendada. Eu fazia uma incisão em seu braço e
Elizabeth lambia até que a pequena fonte cessasse.
Tais coisas fizeram com que os negros tomassem um medo místico da casa grande.
Hoje, quando escrevo estas palavras, já se passaram anos que chegamos
aqui. Estou assustado. Os negros andam dominados por um medo
incontrolável. Aguardo a revolta. No meio da noite, de qualquer noite,
isso acontecerá. Talvez nos matem, talvez destruam o casarão. E estou
impotente. Boa parte dos feitores já se foi e não consigo mais convencer
outros a trabalhar para mim.
Enquanto
aguardo o fim, lembro de um tempo que se perdeu na memória. Uma era de
felicidades e belezas sem fim. Isso não poderá ser queimado ou
destruído.
Gostaria
apenas de estar certo que Elizabeth sobreviverá, como tem sobrevivido
até aqui... Mas, mesmo que meu corpo seja destruído, o meu amor por ela
jamais morrerá e talvez isso a salve. É O QUE PEÇO A DEUS."
Hugo fechou o livro e cerrou os olhos . Havia ainda algumas palavras
borrados ou queimadas. Mas já bastava. Lá fora a tempestade diminuíra.
Agora podia-se ouvir o barulho das goteiras e da lenha estalando no
fogo. Estava assim, absorto, quando imaginou ouvir gemidos. Abriu os
olhos, assustado. A luz vermelha do fogo tingia de sangue as paredes.
Nada. Nenhum som estranho.
Levantou-se. Usou o canivete para retirar a mandioca do fogo. Então
ouviu novamente o gemido alto e forte vindo do porão. O susto fez com
que tocasse na grelha, queimando a mão.
Hugo levou a mão à boca. Permaneceu assim algum tempo, tentando
identificar o som. Ao sair da cozinha, o canivete na mão, percebeu que
os gemidos aumentavam. Descobriu, ao lado do armário, um buraco.
Recuou até a cozinha, incomodado pela dor da ferida, e retirou da
mochila alguns trapos. Enrolou-os num pedaço de madeira e aproximou do
fogo. Depois voltou para o buraco. Iluminando-o com a tocha, percebeu
que havia uma escada.
Desceu os degraus levantando a tocha acima da cabeça e segurando na
borda de madeira. O chão, de terra batida, era firme. Os gemidos
continuavam, agora mais fortes. Pareciam, agora, formar palavras. Ratos
guinchavam, correndo de um lado para o outro.
Houve um movimento atrás de uma pilastra. Um vulto branco se encolhia
no chão. Aproximando a tocha, Hugo percebeu a pele alva e os cabelos
negros. Elizabeth levantou os olhos e implorou:
— Sangue!...
fim
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