quarta-feira, 28 de março de 2012

Dom Calmet, o primeiro caçador de vampiros da História

Em pleno século 18, a Europa vivia a efervescência do Iluminismo. Filósofos como Voltaire e Diderot empenhavam-se em lutar pela primazia da razão, abandonando as superstições, destruindo mitos, e resgatando os antigos ideais de uma ciência explicativa para o mundo. Sua “bíblia” era a obra máxima do saber na época: a enciclopédia, que se propunha reunir todos os conhecimentos construídos pelo ser humano até então. Um movimento deste gênero construíra, também, seus próprios inimigos: a religião, a visão teológica, as crenças infundadas, e as lendas que - supunham - atrapalhavam a visão correta do homem sobre a realidade.

Não foi sem espanto, pois, que em 1732, boatos provenientes do leste europeu falavam sobre o retorno de mortos que não apenas falavam e andavam, mas que infestavam os vilarejos, atacavam homens e animais, sugavam-lhes o sangue até torná-los doentes e matá-los. Depois de “vistos e reconhecidos”, eles eram exumados, processados, empalados, decapitados e, finalmente, queimados. Foi na revista Le Glaneur Hollandais que surgiu, pela primeira vez, a grafia do termo “vampiro” para designar estas estranhas criaturas que infestavam uma vasta região que abrangia Hungria, Romênia, Alemanha, Tcheca e Eslováquia, Bálcãs e chegava mesmo as fronteiras da Rússia e Polônia. O caso relatado na revista falava de um tal Arnold Paul que, após sofrer um acidente numa localidade da Sérvia, foi dado como morto mas teria voltado para atacar outras pessoas, criando um verdadeira epidemia de vampirismo que se arrastou durante anos. O notável nesta história é que seu corpo foi examinado por médicos militares, que teriam constatado que seu corpo não havia se corrompido. O procedimento utilizado para cuidar do corpo foi transpassar-lhe uma estaca, que fez o morto gritar e perder sangue - mesmo assim, somente a extinção de seu corpo pelas chamas deu um fim na terrível criatura.
Xilogravura sobre Vlad Tepes
O caso deixou a Europa iluminista intrigada: que tipo de monstruosidade estaria ocorrendo naquelas regiões? Seria uma doença? Simples superstição? Atendendo ao apelo das mentes racionais da época, entra então em cena Dom Calmet, que talvez tenha sido o primeiro investigador oficial de vampirismo na história da humanidade.

O primeiro inquérito de vampirismo da história

As lendas sobre vampiros e criaturas sugadoras de sangue eram comuns na Europa desde a antiguidade. Com o tempo, contudo, elas foram rareando ou desaparecendo até se transformarem em mitos ou lendas antigas. Foi surpreendente para esta época o reaparecimento destas criaturas malignas, e a questão incomodava sobremaneira as mentes intelectuais do momento.
Augustin Calmet (1672-1757)
Dom Calmet foi um destes investigadores racionalistas daquele momento que resolveu topar a parada, e realizar um inquérito sério e científico sobre o problema. Obviamente, ele tinha razões mais profundas para esclarecer o enigma; Calmet era um clérigo, extremamente preocupado com as questões teológicas relativas a volta dos “mortos-vivos”, e sua investigação cumpria um duplo sentido: destruir científica e religiosamente a possibilidade da existência de vampiros e outras criaturas malignas, de modo a afirmar os dogmas católicos mas utilizando, para isso, dos métodos racionalistas iluministas.
Calmet, inclusive, tinha um bom trânsito entre os iluministas, e havia aprendido bastante sobre técnicas de pesquisa existentes na época. O objetivo de seu trabalho seria discutir, inicialmente, as impossibilidades metafísicas da existência destes seres: depois, apresentar as provas científicas que caracterizariam estes enganos. O resultado de suas andanças - que demoraram anos no leste europeu - foram publicadas, finalmente, em 1751 com o título de Tratado sobre a aparição de espíritos e sobre os vampiros ou os revividos da Hungria, da Morávia, etc. e causaram choque entre os contemporâneos quando o autor deixava, de maneira absolutamente inconclusa, o problema da existência dos vampiros, fazendo a sociedade da época supor que eles realmente poderiam existir...

As descobertas de Calmet

Antoine Calmet foi um erudito religioso conhecido sob o nome de Dom Augustin Calmet. Nasceu na Lorena em 26 de fevereiro de 1672. Ainda jovem escolheu tornar-se um padre beneditino da Congregação de Saint-Vanne et Saint-Hydulphe. Percorreu os diversos mosteiros de sua ordem, devorando as bibliotecas e redigindo numerosas compilações históricas. Em 1728, Dom Calmet tornou-se abade na Abadia Saint-Pierre de Senones, capital do principado de Salm. Foi ali que trabalhou e viveu até sua morte, em 25 de outubro de 1757, mantendo correspondência com numerosos cientistas.
O fato de ser preciso exumar e mutilar os corpos de cristãos para destruir os vampiros na Europa oriental chamou a atenção da igreja: esta, primeiramente, convocou um padre chamado Giuseppe Davanzati para elaborar uma resposta ao problema que, depois de estudar durante cinco anos os casos de vampirismo, escreveu a tese Dissertazione sopra I Vampiri publicada em 1744, em que concluía que os vampiros eram fruto da imaginação e que os corpos não deveriam ser profanados.

Contudo, a tese de Davanzati não convenceu muita gente, por seu teor eminentemente religioso e não científico. Foi assim que, logo depois, entra em cena Dom Calmet, um religioso que também possuía os conhecimentos “científicos” da época, e que estava estudando os casos de vampiros de modo mais aprofundado e sério. Em 1746 – após tomar conhecimento das discussões e debates a respeito dos casos de
vampirismo na Europa Central, como o de Arnold Paul, quando decidiu examinar a questão à luz da razão e da religião, e de realizar suas investigações diretas, Calmet publica sua Dissertation sur les apparitions des anges, des demons et des esprits, et sur les revenans et vampires de Hongrie, de Bohême, de Moravie et de Silésie,(Dissertação sobre as aparições de anjos, demônios e espíritos, e sobre os revividos e vampiros da Hungria, da Boêmia, da Moravia e da Silésia.), uma longa compilação dos casos de vampirismo ocorridos na Europa Central, a repercussão de seu trabalho foi tamanha que uma nova edição revista e ampliada foi publicada em 1751 com modificações no título: Traité sur les apparitions des esprits et sur les vampires ou les revenans de Hongrie, Moravie, etc. (ou Tratado sobre as aparições dos espíritos e sobre os vampiros ou os revividos da Hungria, Moravia, etc., a versão final com o qual trabalhamos agora).

Dom Calmet era um renomado estudioso da época, e seus trabalhos eram voltados para a interpretação e tradução bíblicas, sendo reconhecido pelos outros clérigos como um dos principais acadêmicos do catolicismo daquele momento. seu interesse nos casos de vampirismo que estavam ocorrendo na Europa Central e Oriental lacabaram lhe rendendo repreensões, críticas e até mesmo o escárnio de outros colegas do clero, dos cientistas e filósofos iluministas. Calmet afirmava no início de seu livro:“Minha intenção é tratar aqui a questão dos revividos ou vampiros da Hungria, Moravia, Silésia e Polônia, arriscando a ser criticado de alguma maneira: os que o crêem verdadeiros me acusarão de temeridade e presunção, por ter colocado em dúvida, ou mesmo ter negado sua existência e realidade, outros me repreenderão por ter empregado meu tempo a tratar desta matéria, que passa por frívola e inútil no espírito de muitas pessoas de bom senso. De alguma maneira penso que terei de boa vontade aprofundado uma pergunta, que parece importante para a religião: porque se o regresso dos vampiros é real, importa defendê-lo e proválo e, se é ilusório é do interesse da religião desenganar os que o crêem verdadeiro e destruir um erro que pode ter muitas conseqüências”. (CALMET, 1751, p.IX-X)

As críticas surgiram pelo simples fato que, ao fazer sua compilação dos casos de vampirismo com a intenção de desacreditá-los e de acabar com o que considerava o sacrilégio de profanar os corpos e as sepulturas para destruir os suspeitos de serem vampiros, Dom Calmet acabou por endossar as crenças. Suas conclusões são, em alguns casos, ambíguas e, logo no prefácio da obra ele deixa claro que não há provas sólidas da existência ou não dos vampiros e da possibilidade dos mortos voltarem: “[...] Dá-se a estes revividos o nome de Oupires ou Vampiros, ou seja, sanguessugas, e deles contam-se particularidades tão singulares, tão detalhadas e cobertas de circunstâncias tão prováveis e com tantas informações jurídicas que quase não se pode recusar a crença destes países: que estes revividos parecem realmente sair dos seus túmulos e produzir os efeitos que são publicados”. (CALMET, 1751, p.VI)

Nestes relatos dos vários casos de vampirismo que o abade compilou, encontra-se a descrição de como identificar um vampiro e as formas de exterminá-lo. Um dos casos relatados é o ocorrido na “aldeia de Blow, perto da vila de Kadam na Boêmia” (CALMET, 1751, p. 35), de um pastor que, retornando após a morte chamava algumas pessoas que morriam “infalivelmente” após oito dias. Para livrar-se do vampiro atravessaram uma estaca em seu cadáver para mantê-lo preso a sua sepultura, e como não houve resultado, ele voltou a levantar zombando do método usado. Para acabar de vez com a perturbação, ele foi retirado de seu túmulo sendo posto: “[...] sobre um carro para transportá-lo para fora da aldeia e queimá-lo. O cadáver gritou furioso, e agitou os pés e as mãos como vivo, e no momento em que o furaram, soltou muito gritos e derramou sangue muito vermelho e em grande quantidade. Por último, queimaram-no e esta execução pôs fim aos aparecimentos e às infestações deste espectro”. (CALMET, 1751, p.35).

Imagem de um vampiro do séc. XVIII
Ao longo de toda obra, Dom Calmet elenca relatos oficiais sobre o vampirismo – jornais, testemunhos oculares, diários de viagem e críticas feitas por seus colegas esclarecidos, mas não chegou a nenhuma conclusão decisiva: “Contudo, não se procede sem alguma forma de justiça: citam-se e escutam-se os testemunhos, examinam-se as razões, consideram-se os corpos exumados, para ver se são encontradas as marcas comuns, que fazem pensar que estes molestam os vivos, como a mobilidade e a flexibilidade dos membros, a fluidez do sangue, a incorrupção da carne. Se estas marcas são encontradas, são entregues ao carrasco que queima-os. Algumas vezes os espectros aparecem ainda durante três ou quatro dias após a execução. Às vezes prorrogam por seis ou sete semanas o enterro das pessoas suspeitas. Quando não se corrompem e seus membros permanecem flexíveis e maleáveis, como se estivessem vivos, então são queimados”. (CALMET, 1751, p.36).

Sua imprecisão em atestar os casos como superstição ou realidade e a forma como concluiu que não podia chegar a parecer algum senão ao que criaturas como os vampiros podiam retornar do túmulo, acendeu ainda mais a fogueira das discussões sobre o assunto que varreram a Europa Ocidental, levando inclusive, os  filósofos iluministas a discutir o assunto. Da mesma forma que Dom Calmet, o racionalismo iluminista, ao tentar refutar estas crenças como superstições do povo ignorante, conseguiu exatamente o contrário; difundiu os vampiros por toda a Europa de onde o mito ganhou o mundo.

As incertezas do pesquisador

Na mescla de relatos recolhidos por Calmet, não consta evidência da realidade ou não dos vampiros, e o próprio Calmet não deixa claras suas conclusões. Por todo o Tratado suas opiniões são contraditórias. Um exemplo de suas contradições está em um dos capítulos finais da obra: “Pode-se tirar vantagem destes exemplos e destes argumentos em prol do vampirismo, dizendo que os revividos da Hungria, Moravia e Polônia, não morreram realmente, que vivem nos seus túmulos, embora sem movimento e sem respiração: seu sangue estando fluído e vermelho, a flexibilidade dos seus membros, os gritos que soltam quando seu coração é perfurado ou sua cabeça cortada prova que vive ainda. A principal dificuldade que tento entender é como saem dos seus túmulos: para lá retornam sem remexer a terra, que se mantém em seu primeiro estado: como aparecem vestidos em suas roupas, como vão e vêm, como comem? Se for assim porque voltar a seus túmulos? Porque não residir entre os vivos? Porque sugar o sangue seus parentes? Porque infestar e fatigar estas pessoas, que devem serlhes caras, que não o ofenderam? Se qualquer parte disto é somente imaginação por parte dos que são molestados, como explicar que estes vampiros são encontrados em seus túmulos sem corrupção, cheios de sangue, flexíveis e manejáveis; que se encontram seus pés com lama no dia seguinte ao que correram assustando as pessoas da vizinhança, que não se observa nada similar nos outros cadáveres enterrados pelo mesmo tempo no mesmo cemitério? Como não retornam mais, não incomodam mais, depois que são queimados ou empalados? Será ainda a imaginação dos vivos e as suas crenças que se tranqüilizam após estas execuções feitas? Como que estas cenas renovam-se assim freqüentemente nestes países, que não são prejudicadas, que a experiência diária em vez destruir faz apenas aumentar e fortificar?” (CALMET, 1751, p.211-212).

Como pode ser observado no trecho transcrito acima, o próprio Dom Calmet não sabia no que acreditar. Ele buscava refutar as crenças, mas por outro lado, deixava perceber que ele mesmo não decidira se acreditava ou não nos relatos que compilara. Este foi o estopim para toda a discussão que se seguiu a publicação do Traité sur les apparitions des esprits et sur les vampires ou les revenans de Hongrie, Moravie, etc.  

Os efeitos da dissertação de Dom Calmet

Ao publicar o Traité sur les apparitions des esprits et sur les vampires ou les revenans de Hongrie, Moravie, etc., Calmet trouxe a discussão para o centro do fenômeno iluminista, e se transformou num grande bestseller com a ajuda involuntária dos próprios filósofos iluministas. A obra teve inúmeras publicações, e ficou conhecida em toda a Europa. Os efeitos da obra foram tão impactantes que a imperatriz da Áustria, Maria Tereza, decretou uma lei proibindo a abertura de sepulturas e o estacamento de mortos, tentando coibir o surto de pânico que se espalhara nos domínios do império Austro-húngaro. Os filósofos do Iluminismo passaram a discutir o assunto e finalizaram a questão determinado, arbitrariamente, que era tudo irreal, fantasia da imaginação daquele povo. A lei também conseguiu atingir seu objetivo, ao diminuir as violações de corpos e, lentamente, acabar com a histeria vampírica. Depois de o assunto ser rechaçado e ridicularizado por homens como Voltaire (que dedica um verbete de seu dicionário filosófico especialmente à questão), Diderot e Rousseau, as autoridades seculares e eclesiásticas não viram mais necessidade de desmistificar os vampiros, e a obra de Calmet foi posta de lado como um “trabalho científico” - mas o autor não viu isso ocorrer, falecendo em 1757.

A razão, pois, negava seus próprios métodos, em função da afirmação de um discurso contra as crenças e superstições. Foi exatamente aí, no entanto, que a literatura popular pôde tirar proveito daquela série de histórias interessantes relatadas por Calmet, e sobre as quais haviam tomado conhecimento com toda a discussão que se desenrolara. Durante quase um século, diversos autores empregaram o vasto material recolhido por Calmet para criarem contos e histórias fantásticas sobre vampiros, dando-lhes diversas formas diferentes. O romance Drácula (1897), de Bram Stoker, seria tão somente a conclusão deste processo, dando uma forma acabada ao mito do vampiro que conhecemos hoje. Quanto a Dom Calmet, este passou a história - não como o pesquisador que realmente se propunha a ser, e sim, como a fonte principal de um dos maiores mitos do imaginário e da literatura popular mundial.

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