Ninguém
sabe ao certo quando ela foi construída, mas todos sabem que foi
desativada sob estranhas circunstâncias até hoje não explicadas de forma
convincente. Mas, independente disso, lá está ela, sozinha em meio ao
campo, com apenas uma estreita estrada de terra, que no passado era o
único caminho em meio ao ralo matagal que levava até o portão principal
da Igreja de Tampadas.
Tampadas
é o nome do pequeno vilarejo localizado no interior do país; uma
pequena cidade que ainda não tem luz elétrica, e quase não tem população
também – muitos foram embora após o fechamento do único templo cristão
do local; e os que ainda vivem por lá, não chegam perto da pequena
igreja de ar sombrio e desolado.
Embora
a população local evite aquele solitário templo, o aviso de não
aproximação faz parte da tradição oral daquele povo, e os forasteiros
que porventura passam por ali não tem conhecimento da história daquela
estranha igreja – muitos nem ao menos tomam conhecimento de que há uma.
Dizem que os que por ali se aventuraram nunca mais foram vistos.
Um
dia, um desses viajantes chegou até o pequeno vilarejo caminhando.
Carregava apenas uma mochila de viagem e uma máquina fotográfica
pendurada no pescoço. Chegou até o único bar existente, bebeu um
refrigerante com tamanha sede que parecia que não bebia nada há dias;
quando terminou, puxou conversa com algumas pessoas que estavam por ali,
fazendo perguntas sobre o vilarejo, modo de vida e outras coisas sem
muita relevância. Depois de ouvir as respostas, disse que estava de
férias. Estava fazendo um passeio pelo Brasil, visitando apenas as
pequenas cidades e os vilarejos do interior, tirando fotos e escrevendo
um diário.
Após
duas ou três horas de conversa e muitas fotos, pagou a bebida e saiu.
Quando estava na estrada de saída do vilarejo, viu uma estreita estrada
de terra, já coberta pelo mato alto que crescia à sua volta e quase
escondia sua entrada. Sem ninguém por perto, o estranho resolveu
percorrer aquela estrada, curioso para saber aonde iria dar, já que as
casas e o pequeno comércio do vilarejo encontravam-se concentrados na
extremidade sul. Com muita dificuldade, caminhou por cerca de dez
minutos, até sair em um campo aberto, cercado por algumas árvores que
pareciam tão velhas quanto a própria humanidade. Algumas com troncos
retorcidos, outras com troncos que pareciam terem sido queimados; mas
todas as árvores tinham em comum o fato de não terem folhas.
Observando
ao redor, pôde perceber, a alguns metros à frente da estrada, uma
pilastra de pedra com quatro ou cinco metros de altura que servia de
pedestal a um anjo de mármore que um dia fora branco, mas agora estava
tomado pela terra e pelas marcas da chuva e do tempo. Havia algo na
expressão do anjo - que olhava para cima - que o deixou triste e com um
sentimento angustiante de solidão. Teve certeza de que o anjo começou a
chorar quando olhou para ele.
Alguns
metros adiante viu uma igreja, de aspecto sombrio e de abandono. Suas
paredes, de pedra, já mostravam o quanto o tempo pode ser cruel; a
entrada principal consistia-se de uma porta dupla de madeira pintada de
azul, já descascada e bem deteriorada. Duas pequenas janelas pairavam
como olhos atentos em cada lado da porta. Estendendo-se verticalmente
acima do telhado havia uma torre, aonde se podia ver o grande sino de
bronze totalmente imóvel, como se estivesse em seu repouso eterno.
Chegando perto, percebeu que o portão principal estava fechado, e não
parecia haver ninguém por perto. Ao forçar um pouco a porta, esta se
abriu, dando passagem para o salão principal.
A
única iluminação dentro da igreja era proveniente dos raios de sol que
passavam pelas pequenas janelas – sem vidros – nas paredes laterais.
Marcas de água que há muito correram por ali indicavam um problema no
telhado, e tornavam as paredes um pouco melancólicas. Os bancos de
madeira já estavam quase ou totalmente consumidos pelos cupins.
Encantado com a beleza sinistra do lugar, o estranho tirou diversas
fotos, e dirigiu-se ao que parecia ser a sacristia, no final de um dos
corredores.
Quando
o estranho passou pela porta, um ar de curiosidade e espanto tomou
conta do seu outrora estado de empolgação. A sala, que devia ter por
volta de quinze metros quadrados, tinha todas as quatro paredes do
recinto cobertas por fotografias antigas, todas com um tom de sépia,
emolduradas em belas molduras – todas feitas artesanalmente – e embora
aparentassem estar ali há muito tempo, ainda mantinham um bom estado de
conservação. Do chão ao teto, tudo estava coberto por fotografias.
Embora não houvesse qualquer texto que identificasse as fotos, ele pôde
perceber que eram retratos de famílias.
Por
vários minutos o estranho ficou ali, olhando as fotos, apreciando
aquele ar nostálgico, admirando aquela estranha tristeza implícita no
rosto das pessoas – que, curiosamente, não sorriam nas fotos. Algumas
fotos aparentavam ser da década de 20, outras de 30, mas certamente
nenhuma delas era de depois da década de 40.
Depois
de olhar rapidamente as várias fotografias, acabou parando em uma – que
talvez tenha sido escolhida aleatoriamente, ou apenas tenha chamado a
sua atenção por algum motivo qualquer. Na foto, uma família de nove
pessoas posava de forma quase mecânica. Como que a estudando, o estranho
ficou ali, por vários minutos, analisando cada detalhe existente na
imagem. Com os olhos cheios d’água e um sentimento de vazio, proferiu um
palavrão ao mesmo tempo em que saltava para trás, quando percebeu que
uma das crianças da foto começou a chorar. Ele coçou os olhos, achando
estar vendo coisas, e sacudiu a cabeça, mas percebeu que não só a
criança chorava como as outras pessoas da família gritavam em extrema
agonia, com a dor estampada em seus rostos; ao mesmo tempo, pareciam
desesperadas para sair da foto.
Ainda
atordoado pela visão que acabara de ter, olhou ao redor e percebeu que
em todas as fotos a cena se repetia: todas as pessoas gritavam,
choravam, e tentavam desesperadamente sair de suas pequenas prisões
particulares. O som misturado de choro de crianças e adultos, com os
gritos de agonia, era como uma faca que atravessava seu cérebro. Naquele
momento, ajoelhou-se tapando o máximo que pôde os ouvidos e fechou os
olhos. Em seu interior, parecia estar sofrendo como aquelas pessoas.
Chorou como se estivesse também preso em uma moldura feita
artesanalmente.
Algum
tempo depois – ele não podia mensurar se foram minutos ou horas –
levantou-se, mas ainda sentia o desespero das pessoas ao seu redor. Eram
pessoas, não eram? Ou eram apenas suas almas aprisionadas para toda a
eternidade em uma foto – ou o que parecia ser uma foto?
Não
suportando mais a agonia de estar confinado naquela pequena sala,
correu, dirigindo-se à porta pela qual entrara, mas só teve tempo de
virar-se para perceber que não havia qualquer porta ali; todas as quatro
paredes estavam cobertas de fotografias, e não havia portas ou janelas
por onde sair. Gritando, atirou-se desesperado contra as paredes,
tentando, inutilmente, encontrar uma forma de sair daquele lugar. Com
bruscos movimentos, arremessou as fotos para longe das paredes, mas, a
cada porta-retrato que caía, um novo surgia em seu lugar, e mais e mais
pessoas gritando, chorando, em uma grande sinfonia desafinada.
Sem
qualquer esperança de sair daquele lugar misterioso, após muito gritar e
chorar, percebeu que em uma das paredes havia uma moldura com uma foto
em que não havia ninguém, apenas um quarto. Analisou aquele estranho
objeto mais de perto, ao mesmo tempo em que tentava entender o que se
passava naquele lugar. Percebeu no pequeno cômodo dentro daquela foto
alguma familiaridade, e, novamente, entrou em pânico: aquele havia sido o
seu quarto quando criança. A mesma cama, o mesmo tapete em forma de
palhaço, a mesma janela próxima à cama. Naquele momento, o pânico foi
tomado por uma saudade; saudade de tempos que nunca mais voltariam, e
entendeu que o objetivo de qualquer fotografia era congelar um
determinado momento no tempo; um momento que nunca mais será esquecido e
ficará ali para sempre. Lembrou-se de quantas vezes desejou ter
congelado o tempo.
Fechou
os olhos, e a sacristia foi tomada por um imenso clarão, uma intensa
luz vermelha. Quando apagou, o quarto havia voltado ao seu estado
anterior, a porta encontrava-se no mesmo lugar que estava quando o
estranho a cruzou. O estranho, não entanto, não estava mais ali; agora,
ele fazia parte daquele imenso mural nostálgico, e naquele momento, ele
estava de volta ao quarto que fora seu quando tinha 3 anos de idade.
Passaria toda a eternidade preso àquele lugar, e talvez um dia
implorasse para sair dali, da mesma forma que todas as outras pessoas
que também faziam parte daquele lugar.
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